Dizem os entendidos, sejam eles linguistas, literatos ou outros especialistas da palavra, que a Saudade – habitualmente escrita com letra maiúscula – é um vocábulo ímpar, específico do modo de ser português, tão nosso como as unhas são das mãos. As unhas, desde que saudáveis, só se arrancam dos dedos com dor e sangue. Também as saudades, se é certo o que se proclama, só se removem do peito com drama e tempo de esquecimento. Estes afectos íntimos, estes eflúvios, que Descartes identificaria como paixões da alma, provocados pela movimentação dos espíritos animais, estas comoções, estes transportes de nostalgia vaga, são o resultado de ausências sentidas como privações.
Mas quando um povo, no seu todo, plasma na sua melhor poesia, na sua mais decantada prosa, o estímulo deste ciciado vocábulo e o eleva à dignidade de uma categoria identitária, o que se pode declarar é que não é da privação de um ser concreto e individual que emana o fundamento da Saudade. O que os portugueses têm é saudades deles próprios, como Alma Colectiva, como Ser Social, como ponto de aplicação de um Comum Destino. Se isto for verdade, o que tal significa é que nós, portugueses, nunca ou quase nunca pudemos conseguir realizar a Paixão de que somos portadores. Fazemos fados, uns atrás dos outros, que não é mais do que um modo de chorarmos sobre nós próprios.
5 comentários:
SÓ A PALAVRA É NOSSA
Saudade, muito Ilustre Professor,
não é um sentimento privativo
de criatura alguma ou extensivo
a toda uma nação, seja qual for.
Já Cícero, o mais clássico escritor
do romano idioma, ainda hoje vivo,
alude a ele como um lenitivo
por Túlia arrebatada ao seu amor.
Tanto nas horas más como nas boas,
todos os povos, todas as pessoas
são susceptíveis desse sentimento.
O que país nenhum tem como nós
é o termo em si, essa tão doce voz
que de nós faz um povo ternurento!
João de Castro Nunes
SAUDADE!...
Saudade... Que será?... Confesso que busquei
nos dicionários poeirentos e antigos,
mas o sentido rigoroso não achei
desta doce palavra de perfis antigos.
Dizem que ela é azul como as montanhas
e que se esfumam nela aos poucos as paixões,
pronunciando-a com tremuras nas entranhas
um nobre amigo meu (e das constelações).
Sem precisar de olhar, em Eça a imagino.
O seu doce segredointriga-me bastante;
como da borboleta o corpo estranho e fino
das minhas redes ela está sempre distante.
Saudade... Oiça, vizinho, acaso você sabe
a significação desta palavra branca, esta eiró que se evade?
Sei não... E vem-me à boca o teu tremor suave...
Saudade!...
Pablo Neruda
(Versão portuguesa, melhorada, de João de Castro Nunes).
Rectifico a última quadra:
Saudade... Oiça, vizinho, acaso você sabe
a signaficação com probabilidade
desta palavra branca, esta eiró que se evade?
Sei não... E vem-me à boca o teu tremor suave...
J. C. N.
Caro Amigo,
Sem pretensão de sábio ou filósofo, mas como fruto de lucubrações sobre a nossa origem, quer-me parecer que a Saudade, sobre a qual já D. Duarte escrevia, nos vem do sentimento restante vivido pelo berbere passado à Península ao lembrar as searas deixadas além do Estreito ou, mais ainda, a imensidão do deserto que lá o atraía. Foram as memórias dessas terras largadas longe para vir viver aqui que plantaram no peito dos descendentes um sentir amargo e doloroso, mais tarde chamado Saudade. E essa Saudade transportaram-na os homens do Povo para todos os recantos do mundo quando embarcaram no único “camelo” disponível e navegaram através do único “deserto” líquido que se lhes desdobrava aos pés. Essa Saudade vem do céu estrelado do Sara e da frescura dos oásis depois do dardejar inclemente dos raios do sol; vem das caravanas que nunca abandonam o seu eterno deambular entre o ontem e o amanhã. Essa Saudade deu-nos um D. Sebastião e a esperança de voltar “ao ontem-futuro” e um Fernando Pessoa perdido dentro de si mesmo nos seus heterónimos. Essa Saudade oferece-nos a dor e o desejo de estar dorido.
Um saudoso abraço
"SAUDADES DE NÓS"
Tem razão, Professor: a nossa gente,
além de toda a espécie de saudades
que afectam as demais comunidades,
tem uma que é das outras diferente.
Não é que nós sejamos desiguais
dos outros povos ou das outras raças,
mas a verdade é que, nestas devassas,
nós nos achamos sempre especiais.
Para nós a saudade é como um rito,
como um estigma que trazemos dentro
da nossa carne em funda letra inscrito.
Quer seja à flor da pele quer no centro,
até de nós, da nossa identidade,
um laivo próprio temos de saudade!
João de Castro Nunes
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