Vogamos na vida e os símbolos cercam-nos. Muitas vezes, esses símbolos nem sequer possuem forma física, figura, corpo concreto. Kant dizia que o espaço e o tempo eram as formas apriori da sensibilidade, sem as quais se tornaria impossível a simples objectividade e a disciplina do mundo que nos cerca. Mas a mera concepção do espaço remete-nos imediatamente para simbolizações. E estas articulam-se, desde logo, com o património dos saberes mais primitivos, com aquelas noções que recebemos, quase no berço, através da voz insinuante dos nossos pais. “Meu filho, Jesus Cristo ressuscitou dos mortos, subiu ao Céu e lá se encontra, à direita de Deus-Pai”. Isto constava também do Credo ; mas o meu maior Credo era a voz dulcíssima da minha Mãe, fazendo-me crer que o Deus ressuscitado jamais poderia ter encontrado o seu “lugar-natural” à esquerda de Deus-Pai. Ele tinha, necessária e infalivelmente que se sentar à direita do Seu portentoso Progenitor. Os meus pais eram ambos conservadores. Para eles, havia uma diferença insuperável, substancialíssima, entre a esquerda, a sinistra famigerada, e a direita, justa, equânime, salvadora, segundo a validação por eles outorgada. Mas um sinistro Destino veio complicar-me este espaço, habitado por divindades-lares incorruptas, sempre perfiladas à direita da face augusta do meu nobilíssimo Pai e do ombro caricioso da minha Mãe, Senhora eterna dos meus afectos, indomitamente católica, apostólica, romana. Esse mofino Destino, que trocou todas as simbologias, coincidiu com a minha vinda para a Universidade. Aí eu fui aprendendo, quando estudei por minha conta e risco a Revolução Francesa, que os montanheses, indómitos deputados do radicalismo popular, se sentavam à esquerda do hemiciclo e que os representantes da Gironda, contemporizadores com o “juste milieu”, que eu já abominava, tomavam assento ao centro e à direita do espaço público parlamentar, simbolizador daquele novo Poder temporal. Ao longo do tempo, à medida que cresci, fui-me dando conta que era outra a minha simbologia do espaço, quando confrontada com aquela que embalou os meus donairosos dias de adolescente. Deus lá está com eles, com os autores deste meu já desgastado ser, acreditando eu que um e outro foram dispostos, conforme pretendiam, à direita do Empíreo que os acolheu. A minha preocupação mais funda, mais dilacerante, mais sinistra, numa palavra, concentra-se toda no temor de ficar longe deles, quando for chegada a minha hora. Bem vistas as coisas, os símbolos não percebem nada de afeições. Foram elas , afinal, desde sempre e para sempre, aquele sal da vida, aquele mel de colmeia que nutriu os dias fulgurantes do vigor moço, exigente e incitante com que procurei o sentido das coisas. E a minha pobre descoberta,afinal, consistiu em reconhecer que eu nunca me encontrei - embora o não tivesse sabido em tempo útil - à direita ou à esquerda dos Senhores meus Pais e que a única simbologia possível desta geometria de afectos passou, do princípio ao fim, pelo simbólico desafio de encontrar o ponto de convergência de todo o profundo Amor que deles venturosamente recebi.
27 de julho de 2008
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4 comentários:
Ilustre Professor e Distintíssimo Amigo: Sem sombra de lisonja, por desnecessária, não exagero se disser que nunca li prosa tão bela e deliciosa como a que, a propósito dos conceitos de "esquerda" e "direita" (dextra e sinistra, para os romanos), V. Exª dedicou aos "Senhores seus Pais". Palavras enternecedoras e reveladoras da humana fibra moral do seu carácter. Felicito-o e invejo-o. Que pena sinto de não ter sido eu o seu autor! Sentir-me-ia, se o fosse, a mais feliz das criaturas e o mais nobre dos homens de letras, A sua mensagem é literariamente insuperável, Só lhe desejo que, se o "céu" não passar de uma miragem, mas realmente existir, encontre um bom lugar na proximidade do seu nobilíssimo Pai e da Senhora eterna dos seus afectos, independentemente da simbologia dos espaços que em si nada ou pouco significam. Sabia que no Senado romano não havia, em termos de opinião, nem esquerda nem direita? Conceitos modernos que para Deus não contam. Contentemo-nos, com Antero, em repousar na sua mão, "quando for chegada a nossa hora". Uma vez mais lhe invejo, no bom sentido, a primorosa qualidade dos seus originalíssimos escritos. Em comparação, não passo de um aprendiz de feiticeiro.
João de Castro Nunes
Meu Caríssimo Amigo,
É difícil, ou mesmo impossível, com tanta inteligência, sensibilidade e sólidas mostras de sabedoria, dizer mais e melhor sobre a «geometria dos afectos» e as simbólicas posições que cada qual poderá ocupar junto do Arquitecto do Universo depois da passagem por este mundo que conhecemos. Mas se essa tarefa é já por si intelectualmente hercúlea mais notável se torna quando associada à homenagem de gratidão e amor pelos Progenitores tal como, com varonil carinho, a tece aos Senhores seus Pais.
Tenho como certo que, «se lá no assento etéreo», no dizer de Camões, onde repousam Aqueles que lhe deram o Ser, sentimentos humanos são permitidos, uma lágrima de orgulho por tal Filho terá rolado nas faces dulcíssimas do Senhor seu Pai e da Senhora sua Mãe.
Orgulhoso me sinto por poder contá-lo entre o limitado número de Amigos a quem muito estimo e muito mais admiro.
Um abraço
DESILUSÃO NUNCA TEREI
Ao Professor e Filósofo José Reis
Desilusão nunca terei, de facto,
quer haja ou não, depois desta existência,
uma outra vida sem nenhum contacto
com quem teremos tido convivência.
É que se tudo acaba realmente
em terra, pó e nada convertido,
nunca por nunca ser a minha mente
terá conhecimento do ocorrido.
Mas se, pelo contrário, entre as estrelas
eu acordar aos pés de Deus no céu,
cantem comigo os anjos um tedéu.
Verei por fim saldadas as querelas
e confirmadas todas as versões
que deram campo às minhas ilusões!
João de Castro Nunes
SÍMBOLOS QUE FALAM
O símbolo é a forma de expressão
do que não é possível de dizer
por não haver palavra ou locução
capaz de traduzir o que se quer.
É, por assim dizer, a linguagem
que sem palavras para se expressar
se serve da metáfora ou imagem
como se fosse um modo de falar.
Direita, esquerda são, sob este aspecto,
espaços sem paredes e sem tecto
mas carregados de mentalidade.
Porque há-de o azul ser lema da nobreza
e o verde, que é o tom da natureza,
andar ligado à sinistralidade?!...
João de Castro Nunes
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