31 de julho de 2008

SOLIDÃO NA MULTIDÃO


Os milhares de milhões de seres humanos que hoje habitam o nosso planeta prenunciam um sombrio futuro para o reduto das liberdades civis e políticas. O problema não resulta apenas, segundo pensamos, do inevitável esgotamento de recursos e da intolerável pressão sobre o meio ambiente, sobre a fauna, sobre a flora e sobre os recursos naturais em geral. Soubemos, desde os alvores da hominização, que este bicho inquieto e estranho, este bípede com cérebro complexo, cuja natureza reivindicamos, não era mais do que um predador sem freio, uma “besta cupidíssima por coisas novas”, segundo a caracterização de um humanista italiano cujo nome já se me apagou da memória. E fomos também sabendo que a sua incessante multiplicação se traduz, invariavelmente, por um teor, cada vez mais acrescido, de conflitualidade e de anomia. É certo que a espécie humana necessita de hiatos anómicos, ou seja, de períodos intermitentes no decurso dos quais se procede à abolição das normas, das regras admitidas de conduta, dos travões sociais com que se anestesiam os fermentos da desordem e da licença. O Carnaval, sobretudo o que foi vivido na época medieval, trazia este selo de vertigem e de subversão. Contudo, a transgressão momentânea era o ingrediente equilibrador que logo encaminhava a sociedade para uma vivência “normal”, a partir das Cinzas. Hoje a festa, seja ela carnavalesca ou não, é outra coisa. Ela parece ser uma narcotização dos sentidos, um exorcismo de infelicidades e frustrações acumuladas, um esconjuro de estilos de vida que nos condenam à mais rigorosa solidão, por entre o rumor indistinto de multidões anónimas, com que topamos mesmo aqui, ao lado da nossa infeliz solitude. O homem infeliz é mais temível do que uma fera ferida. É que nele se assume uma anomia sem retorno, ou seja, uma revogação de disciplinas de coexistência que o colocam apenas perante si mesmo e o fazem espectador isolado de um deprimente espectáculo. É como se ele estivesse a representar o drama da vida num palco imenso, rodeado por um incontável público desatento, que não o olha, não o preza e não o quer. Um homem destes pode matar-se ou matar. Mas é-lhe definitivamente vedado o acto de amar, a partir do momento em que já nem sequer acalenta o amor de si, por si e para si. É por isso que os poderes instalados se vêem constrangidos a tutelas de conduta e a modalidades de legislação cada vez mais autoritárias e invasivas. É que, desaparecido o homem do Carnaval transitório, o que agora há a regular é a conduta do homem que faz de si mesmo o actor de um Carnaval trágico, murmurando coisas sem nexo no meio de um palco imenso, perante um inesgotável público, que nem sequer nele repara.

2 comentários:

Luís Alves de Fraga disse...

Caríssimo Amigo,
A sua reflexão sobre a solidão do Homem nos tempos actuais está completíssima. Solidão destrutiva que vai corrompendo as possibilidades de vida na Terra nos próximos decénios. E isto, porque, além de predador e solitário, o Homem, dizendo-se um ser social, é egoísta, por isso, ao apropriar-se do que destrói, destrói sem pensar em repor para gerar o equilíbrio futuro. Importa a comodidade actual e pessoal; a futura e colectiva é a herança que deixamos para os vindouros. E este fenómeno egoísta e predador a todos os níveis tem-se vindo a agravar em cada década que passa por força da chamada economia de mercado e, acima de tudo, pela chamada liberdade económica ou liberalismo.
A busca de um sistema político que combata o egoísmo da economia de mercado até parece anti-natural e, por conseguinte, condenável. Contudo, sê-lo-á? No cerne da questão está um problema essencial: a descoberta dos limites, a definir, da liberdade; liberdade individual e liberdade colectiva, porque é em nome da manutenção destas que o egoísmo se torna incontrolável, dando origem à “regulação” feita pelo mercado. Estamos perante um binómio quase insolúvel e que conduz a Terra e a humanidade para o abismo do desconhecido.
Estarei a pensar bem?
Um abraço

Anónimo disse...

"LIVRE E HUMANO"

Fácil não é manter-se solitário
por entre a multidão que nos rodeia,
pois para o conseguir é necessário
ter de si próprio uma elevada ideia.

Desde que o ser humano abandonou
a vida em horda, colectivamente,
por todas as maneiras se esforçou
por ser cada vez mais independente.

"Livre e humano" - eis como deve ser
o verdadeiro cidadão moderno,
autónomo, distante mas fraterno,


sem prestar culto às "bestas" do poder
que estultamente vibram de emoção
perante a mais primária multidão!

João de Castro Nunes