Sentia outrora o Natal no corpo todo. Quando era menino, a paisagem invariavelmente branca de Trancoso era comparada com os postais ilustrados que os meus Pais enviavam e recebiam. Neles surpreendia, maravilhado, Pais Natal pançudos, vestidos de vermelho, com o rosto rubicundo e o riso fácil, de orelha a orelha. Vejo-me, em lembrança, dentro de abafos de lã, tricotados pela minha Mãe, a caminho de uma Missa do Galo pouco entendível, toda recitada em latim, língua muito bárbara, cheia de recortes sonoros irreconhecíveis. As árvores combinavam a alvura do nevão com o adorno dos gelos, muito cintilantes, de uma transparência mágica, pendentes de ramos silenciosos. Tanto bastava para que eu pudesse imaginar que o Menino Jesus deveria também ter uns cueirinhos confortáveis, bem quentes, talvez igualmente tecidos pela Sua Santa Mãe.
Outras vezes, os Natais eram passados na velha casa dos avós paternos, com a Avó-viúva a pontificar numa cozinha de aldeia, por entre panelas pretas de ferro, com três pernas, aquecidas directamente pelo crepitar da velha lareira fumarenta. Aí se cozinhava o melhor bacalhau com batatas e couves galegas de que me lembro. E enquanto a noite progredia, estirando a sua preguiça por camas forradas de neblinas azuis e pingos discretos de chuva, a Tia Ermelinda, competente doceira, aplicava-se na fabricação de sonhos de açúcar, de filhós e bolinhos de noz. In illo tempore, o Natal já ressumava um vago, quase imperceptível incómodo, associado à percepção difusa de haver Natais diferentes do meu – quase sem bacalhau e definitivamente sem sonhos açucarados e bolinhos de noz. Era outra, com efeito, a realidade de lares agrestes, onde ventos desabridos rompiam pelas frinchas esbeiçadas, regelando essa população rural, pobre e analfabeta, do coração de uma Beira Alta submissa às imposições do Estado Novo. E o Natal começou a doer-me nas raízes do sentimento.
Depois, a Avó-viúva morreu e os Natais transferiram-se para S. Pedro do Sul. Frequentava por então a Universidade de Coimbra e a minha Mãe ainda tricotava, fazendo-me agora cachecóis com as cores da moda e recebendo de mim quadros de parede onde se pintavam amores-perfeitos, por ser esse o nosso símbolo secreto. O meu Pai, esse, muito preocupado com o sopro da contestação política académica, obtemperava: - Vê lá, rapaz, olha que um curso é melhor do que um comício! E o Natal começou a racionalizar-se, a ser vivido sob dilema, em tensão repartida entre a imagem da pobreza de S. Francisco de Assis e a arrogância opulenta dos Papas-Bórgias.
Nasceram-me quatro filhos em Coimbra e com eles passei alguns outros Natais em lares autónomos, pessoais, com os meus progenitores volitando numa memória de lágrimas, transformados em saudades desses outros Natais distantes. Então se combinava o conforto carinhoso dos vivos com a angústia de não ver outra vez a Mãe a tricotar, novamente o Pai a preocupar-se com o meu destino político…
E aqui estou hoje. À espera de um outro Natal. Devo confessar que já não sinto o Natal no corpo todo. Corro às compras, olho as iluminações, ouço a lamúria dos pedintes e dos comerciantes, os primeiros queixando-se da parcimónia das esmolas e os segundos do rateado dos negócios. E pressinto que há em tudo isto, nesta Democracia de agora e nesta globalização dos nossos dias, um azedume de alma, uma cápsula de solidão que dói e confrange. Deixei de ver o Menino muito rechonchudo e rosado no seu leito de palhinhas. Para falar com franqueza, só consigo ver hoje a macerada face de Cristo na cruz, à espera que lhe façam um melhor Natal.
5 comentários:
Meu Caro Amigo,
Gostei da sensação do Natal na vila, gelado pela Natureza, branco pela neve. Fui sempre um citadino, um lisboeta. O frio de Lisboa era, certamente, diferente do frio da aldeia.
Os Natais para mim foram sendo um crescendo de desilusão, de desencanto, até chegar àquele que passei no mar, a caminho da minha primeira comissão em África. Os Natais africanos – e foram seis – eram quentes, húmidos, suados e por lá não fazia sentido a ideia de neve dos postais ilustrados quando apetecia uma cerveja gelada!
Cada vez menos gosto do Natal, desse Natal comercializado, cheio de luzes e de palavras vazias de sentido que se pronunciam por mera cortesia.
Agora que já estou sozinho com a minha mulher, depois das últimas filhas terem ido viver com os homens que amam, depois de ter feito esquecer a tradição do pinheiro natalício, deu-me vontade de ter, na pequena sala onde passamos os serões, um presépio com as três figuras fundamentais. Não é um presépio católico; é o presépio que me lembra a casa paterna; é um presépio que celebra a Vida.
Saí da saleta para vir ao escritório dar uma mirada no computador e descobrir se o meu Amigo tinha posto algum novo escrito no seu blog. E tinha. Agradeço-lhe a oportunidade deste recuo e desta explicação de um agnóstico que gosta de conviver com os símbolos da sua infância. Não me pergunte porquê… Não saberia responder-lhe!
Obrigado, meu caro Amigo. E, sem o vazio das palavras corteses, permita-me que lhe mande um forte, fortíssimo, abraço de Natal, porque, parece-me, começa a restar-nos somente o prazer de recordar os bons momentos da infância.
NATAL DOS MEUS
Não há Natal este ano a vez primeira
em nossa casa, eivada de tristeza,
porque no teu lugar, à cabeceira,
não há ninguém para ocupar a mesa.
Acabou-se contigo a tradição
que dos meus pais passou ao nosso lar,
cabendo agora à nova geração
não a deixar morrer ou alterar.
Os filhos saibam, netos e bisnetos,
no íntimo aconchego dos seus tectos,
viver no mesma espírito essa festa!
A mim, por consoada, só me resta
buscar no céu contigo algum contacto
por ti rezando em frente ao teu retrato.
João de Castro Nunes
Coimbra, Dezembro de 2oo2.
O NOSSO PRÓXIMO NATAL
Mais um Natal passamos separados.
tu entre os anjos perto das estrelas
junto de Deus, entre milhões de velas,
eu triste e só... por mal dos meus pecados!
Sem nos podermos ver, tocar, sentir
em termos corporais, como é um facto,
estejam nossas almas em contacto
por nada haver que as possa desunir!
Seguidamente, como nós queremos,
permita Deus no céu que nos juntemos,
se antes não for... no próximo Natal!
Então, lembrando o nosso antigo lar,
com muito amor havemos de cear
como era em nossa casa habitual!
João de Castro Nunes
Senhor Professor e Excelentíssimo Amigo:
O seu poemático "bosquejo", "bocetto" ou espontânea "première idée" para um comovido e terno ensaio sobre o Natal da infância de cada um e posterior desencanto inevitável na vida adulta, nem sempre bafejada por ventos de maré, é do melhor que literariamente me tem passado sob os olhos. Ouro de mina, de 27 quilates. Só tenho pena de eu não posuir talento para subscrever escritos de tanta beleza e qualidade. Comparativamente fico-me pela mediania. Com tão apurada sensibilidade, V. Exª vive em permanente Natal: Cristo, como suprema referência cultural dos nossos ideais de fraternidade existencial, renasce no seu coração,livre e humano, em cada dia que passa, não o Cristo macilento do calvário, mas o da gruta de Belém roseamente sorrindo para a "Senhora Sua Mãe" e para as doces mães de cada um de nós. O seu mavioso esboço encheu-me a alma de comovente enlevo. Apeteceu-me cantar um "Te Deum", apesar de mergulhado em carregado e a toda a hora renovado luto. De qualquer forma, no meio de tantos, foi o "único" presente do Natal... que já não tenho! Agradecidíssimo!
João de Castro Nunes
"Tournez, tournez,chevaux de bois"
Verlaine
Sem saber por que razão,
vieram-me hoje à lembrança
meus brinquedos de criança
de madeira e papelão.
Hoje é tudo diferente,
custando muito dinheiro,
coisas vindas do estrangeiro,
sem ninguém ficar contente.
As cianças sem cessar
pedem sempre mais e mais
aos seus pais e suas mães.
Por não ser menino mau,
eu tive para montar
um cavalinho de pau|
Natal de 2008.
João de Castro Nunes
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