25 de setembro de 2009

HOMENAGEM A UM AMIGO

O Autor deste blogue e o Dr. Alberto Vilaça

A sala de leitura da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra enferma, contra a sua própria função, de uma deficiente iluminação natural. Apenas as fiadas de mesas de leitura do fundo, mais próximas de uma uniforme superfície envidraçada, recebem com maior generosidade a luz do astro-rei. Uma boa parte dos leitores que aí acorre vê-se na necessidade de recorrer a candeeiros eléctricos laterais para poder ler com menor mobilização de esforço.

Recordo-me que numa certa manhã nevoenta, em que tive de a frequentar, deparei com uma silhueta de homem em pose singular, que me impediu, nos primeiros instantes, o reconhecimento inevitável, caso o rosto desse leitor se apresentasse em atitude normal. Não era, porém, assim. Estava ali alguém que demonstrava a concentração de um esforço tenso, tenaz, sacrificado, no livro que o absorvia completamente. Mal se lhe lobrigava a face, tão próxima era a distância entre ela e as folhas do volume aberto sobre o tampo da mesa, artificialmente iluminada. A imagem que até mim chegava era a da mais completa unidade entre o livro e o leitor. E ela denunciava que quem assim lia se encontrava com enormes dificuldades de visão, embora também testemunhasse que nem por um momento teria perpassado pela vontade daquele leitor a hipótese de capitulação ou de desistência. Era como se ele nos dissesse, numa mensagem sem palavras, envolta na impressão das atitudes unívocas: “Enquanto eu puder, enquanto eu puder e até ao limite dos limites, aqui estarei para te decifrar”. Para quem gosta de livros, estava ali vertida a forte simbologia que acompanha as dádivas incondicionais da existência. E também as servidões da vida, nascidas do défice associado ao correr implacável do Tempo. Essa imagem percepcionada tocava-me do modo mais pessoal, uma vez que eu próprio sofria e sofro das consequências de um grave acidente de visão, que me deixou sequelas irreversíveis. O respeito que senti por aquele leitor (até então anónimo) foi tamanho, que nem me atrevi a caminhar normalmente. Como tinha de lhe passar ao lado, desloquei-me mais lentamente, quase suspendendo a respiração, para não o incomodar, e pedindo ao soalho e aos sapatos que não rangessem. Não fui bem sucedido. Ao rasar a carteira de leitura daquele homem amoravelmente dobrado sobre as páginas, ele – talvez por fadiga, talvez por curiosidade – levantou a cabeça e deu-se a conhecer. Era o Dr. Alberto Vilaça, aquele Amigo que tanto admirei e venerei, como Intelectual, como Escritor, como Político e como Cidadão.

- Então, Senhor Doutor, por aqui? – interpelei-o eu, omitindo quaisquer referências ao facto estranho de não o ver ocupar uma mesa mais próxima das vidraças do fundo da sala.

- É verdade. É verdade. Foi preciso vir até cá, para verificar uns dados necessários ao meu próximo livro. E como os dicionários bibliográficos e as enciclopédias ficam além, naquela estante, pedi que me fosse distribuído este lugar. Estou mais perto do que preciso.

Trocaram-se mais umas palavras de circunstância e despedimo-nos com a costumada cordialidade. Ao afastar-me, olhei para trás. A figura voltara à forma inicial: arqueada sobre o volume, como se o quisesse abraçar ou o estivesse a beijar. E não sei que estranho génio, que singular vibração, que oculto testemunho me trouxe, a partir daquela mesa, palavras ciciadas que diziam, em oração laica: “Enquanto eu puder, enquanto eu puder e até ao limite dos limites, aqui estarei para te decifrar”.

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