16 de agosto de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO LVI


LVI - O REGICÍDIO

A revolta de 28 de Janeiro de 1908 produziu em João Franco um efeito de fúria incontida. As determinações subsequentes traduziram o seu fundo psicológico instável e psicótico. Lisboa passou a ser vigiada por efectivos policiais que a tornavam terra sitiada e foram dadas ordens à cavalaria da Guarda Municipal para exibir todo o seu poder atemorizante. Os jornais que circulavam eram apenas os que se revelavam afectos à ditadura. Um enxame de informadores invadiu cafés, botequins e locais de convívio. O ditador convenceu-se que a viabilização da sua política requeria a rigorosa medida de expatriar os seus mais denodados opositores. Nesse sentido, João Franco preparou um decreto que permitiria “expulsar do Reino, ou fazer transportar para uma província ultramarina, aqueles que, uma vez reconhecidos culpados, [importasse] à segurança do Estado, à tranquilidade pública e aos interesses gerais da Nação”. A intenção do projectado texto legal foi conhecida pela opinião pública, sendo ele imediatamente designado por “decreto da proscrição” ou “do desterro”. Era uma verdadeira arma de extermínio sobre a qual Franco procurava fazer assentar a sua indisputável soberania política.

O Ministro da Justiça, Teixeira de Abreu, assumiu o encargo de partir para Vila Viçosa, onde então se encontrava a família real, com o objectivo de alcançar, através da assinatura do monarca, a plenitude das condições para a vigência urgente do diploma. Em Lisboa lavrava a murmuração que dava como certa a existência de uma lista de proscritos, designados pelo ditador, prontos a ser expulsos do Reino. A ratificação régia foi dada no dia 31 de Janeiro de 1908. Apesar de seduzido pela riqueza cinegética dos montados alentejanos, D. Carlos entendeu que o momento histórico era demasiado solene para que o seu valido permanecesse na capital do Reino sem a sua expressa e presencial solidariedade. Entendeu regressar a Lisboa no dia seguinte, 1 de Fevereiro.

A viagem correu mal. O comboio real descarrilou e foi com atraso que a comitiva atingiu o objectivo. Era um fim de tarde luminoso e tão cálido quanto era permitido pelos rigores de Fevereiro. Nem uma nuvem no céu. Foi dito, mais tarde, que o rei fizera toda a viagem com estigmas de preocupação no rosto. No séquito dos aristocratas havia quem estivesse com turvos pressentimentos. Foi o caso da duquesa de Palmela, que interpelou João Franco sobre a segurança régia. Obteve a promessa de que tudo correria pelo melhor e que a família real seria ovacionada nas ruas pelo povo e, à noite, no teatro de S. Carlos, voltaria a ser vitoriada pela boa sociedade lisbonense. Era tão grande a confiança do ditador numa recepção entusiasta que o rei e os seus familiares iniciaram o trajecto a percorrer no interior de uma carruagem aberta. Também constou que D. Carlos dispensara uma guarda de honra, como forma de demonstrar à cidade que a normalidade era completa. Lentamente, a carruagem deslocou-se para a esquina próxima da arcaria correspondente ao Ministério da Fazenda. Foi então que a tragédia se consumou.

As versões foram múltiplas e contraditórias. Estampidos vários ocorreram. Quantos? Uns tantos. A família real foi alvejada. Por quantos conspiradores? Dois, seguramente. Mas não seriam três? Ou mesmo mais? Um deles era mais novo e bem vestido. Saltou como um gamo para as traseiras da carruagem e disparou mais do que uma vez com um revólver, enquanto a rainha D. Amélia o procurava sacudir, agitando freneticamente um ramo de flores. Um outro, mais velho e mais alto, de barba preta, retirou de um gibão ou varino uma carabina e disparou repetidamente, antes de ser abatido por um sabre vingador. O rapaz novo chamava-se Alfredo Luís da Costa. O homem das barbas dava pelo nome de Reis Buiça. Nem um nem outro tinham dúvidas de irem morrer. O atentado, que ceifou imediatamente a vida a D. Carlos e fez morrer mais lentamente o Príncipe Real, D. Luís Filipe, ferindo ainda ligeiramente o filho mais novo, D. Manuel, instalou o pandemónio e a desorientação nas tropas e entre os populares. Tudo correu de uns lados para os outros, sem norte e sem tino. As forças policiais desvairaram a um tal ponto que assassinaram a sangue frio um popular, Sabino da Costa, empregado comercial, no interior de uma esquadra da polícia, só porque ele se apresentava ferido. A noite foi caindo sobre uma cidade apavorada. Soube-se depois que os matadores eram carbonários. Teriam agido por conta própria? Há razões para supor que sim. A investigação histórica ainda não pôde estabelecer, até ao presente, outras conclusões. E iria perder-se o rasto do inquérito judicial que foi aberto para indagar com minúcia sobre as circunstâncias do drama. Este descaminho não se verificou no tempo da República. Ocorreu em pleno reinado de D. Manuel II, último rei da dinastia de Bragança.

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