Em meados de Maio, Venceslau de Lima rendeu Sebastião Teles na chefia do governo. Mas o novo governante não era uma carta forte dos baralhos partidários. Derivava toda a sua importância da confiança do Paço. Era um simples áulico, um palaciano à maneira antiga, um amigo pessoal de D. Manuel II. José Luciano, ao ver-se reduzido a uma pura figuração decorativa, talvez tivesse esbravejado no seu palácio da rua dos Navegantes, sacudindo com acrimónia o lendário gato do seu regaço de velho rabugento. O seu pontificado de bastidor parecia eclipsar-se. E, poucos dias após a constituição do novo governo, Sebastião de Magalhães Lima decidiu fazer uma peregrinação pelas principais cidades europeia, procurando convencer a opinião qualificada desses países sobre as mútuas vantagens que poderiam resultar de uma próxima implantação da República em Portugal.
Entrado o verão, as contradições sociais voltaram a manifestar-se. Entre os vários problemas que permaneciam em aberto no cerne da sociedade urbana portuguesa, o da antinomia entre o clericalismo e o laicismo era dos mais espinhosos. A luta pelo livre pensamento, pelo registo civil e por cerimónias religiosamente neutrais nos momentos mais solenes e representativos na vida do ser humano, como, por exemplo, os do casamento e do falecimento, já tinha entre nós alguma tradição. A Associação Propagadora da Lei do Registo Civil eclodira, embora com existência efémera, nos inícios do terceiro quartel do século XIX, tendo porém ressurgido com renovado vigor a partir de 1895. Esta organização irá manter-se na estacada do combate anticlerical praticamente até ao advento da República, apesar das perseguições judiciais que foram movidas a alguns dos seus dirigentes. Também nos últimos cinco anos do aludido século se difundem os “Círios civis”, curiosas formas de sociabilidade ao serviço do ideal do laicismo. Os “Círios civis” foram a resposta encontrada por camadas agnósticas, livre-pensadoras e materialistas para o fenómeno das romarias religiosas. O espírito de romagem, tendo por alvo um templo, um espaço sagrado ou uma festividade religiosa, quase que constituía uma segunda natureza da população crente. O “Círio civil” partilhava do mesmo espírito de excursão ou de visita, mas expurgava-o de quaisquer contaminações religiosas, funcionando como entidade organizadora de um de turismo popular, mas agora sem implicações de crença. Estas organizações, inicialmente espontâneas, enveredaram mesmo por um esboço de movimento federador, que só não se consumou porque as autoridades monárquicas tudo fizeram para o frustrar. Esta militância laica aprofundou-se no início do século XX, sobretudo devido à ressonância provocada por um episódio que ficou então conhecido pela designação de “caso Calmon”. O Dr. José Calmon era o cônsul brasileiro no Porto, sendo também o pai de uma jovem que insistia, para seu grande desgosto, em se fazer religiosa. Num domingo, à saída de uma missa, ajudada por cumplicidades estranhas ao seu círculo familiar, Rosa Calmon subtraiu-se à vigilância paterna para poder realizar a sua vocação. Falou-se então em rapto, como resultado de uma cabala montada por clérigos regulares. O caso teve no país uma enorme repercussão, chegando mesmo a gerar uma vaga anticlerical e anticongreganista de apreciável amplitude. Foi na esteira deste incidente que se fundou a Junta Liberal, presidida pelo médico alienista Miguel Bombarda, cujo escopo visava defender a ordem social das arremetidas das congregações religiosas. A sua mais visível e imediata reivindicação era a de repor a vigência das leis anticongreganistas do Marquês de Pombal e de Joaquim António de Aguiar.
Esta digressão histórica pretende apenas comprovar que os fermentos laicistas que levedaram no decurso do ano de 1909 repousavam numa consistente tradição anterior. O que então se dizia, nos círculos mais vinculados ao republicanismo e ao livre-pensamento, era que o ultramontanismo dava mostras de querer impor-se. Aduziam-se sintomas inquietantes e probatórios deste recrudescimento da reacção católica. José de Alpoím – que passava por ser, devido a despeitos antigos e abortadas ambições, o mais republicano dos monárquicos – chegou mesmo a questionar, em plena Câmara dos Pares, a actuação de certos bispos, que se permitiam fundar seminários sem darem nota de tais procedimentos ao poder político instalado. Miguel Bombada mobilizou então a Junta Liberal e respondeu com uma impressionante manifestação, fazendo desfilar pelas ruas centrais de Lisboa uma massa compacta de cerca de cem mil pessoas.
Não era pacífico, na capital do reino, o clima social. Qualquer desprevenido observador poderia assinalar a crispação entre a nobreza afecta ao Paço e a burguesia nobilitada, desejosas de assistirem à consolidação do trono de D. Manuel II, e toda uma arraia-miúda de trabalhadores por conta de outrém e de uma boa parte dos sectores da pequena e da média burguesias, apoiando, de modo claro ou subreptício, a estratégia sediciosa. Pelos finais do verão recrudescerá a movimentação revolucionária. O directório do Partido Republicano depressa concluiu que os trabalhos concretos da conspiração e o planeamento das futuras operações militares só poderiam assentar num colectivo profissional, saído das fileiras das forças armadas. Sabia-se que a Carbonária ardia de impaciência para dizer na rua, de armas na mão, a sua última palavra. Mas a organização carbonária gozava da mais ampla autonomia, revendo-se num modelo de tamanha reserva, de secretismo tão cerrado, que o diálogo com as chefias partidárias se tornava pouco praticável. Foi em Outubro que se organizou o primeiro Comité militar revolucionário, confiado a nomes como os do Coronel Ramos Costa, Capitão Afonso Pala e Capitão de Fragata Fontes Pereira de Melo. Neste mesmo mês, os jornais de Lisboa especularam com a descoberta de um cadáver na Boca do Inferno, em Cascais. Em certos botequins e conclaves políticos da capital, aventou-se a hipótese deste apelidado “crime de Cascais” poder ter sido decretado pela Alta Venda Carbonária e praticado sobre um delator da organização. Sabia-se, com efeito, que a Carbonária previa a aplicação inapelável desta suprema punição aos casos comprovados de felonia. Importa salientar que nem todos os chefes republicanos depunham em tal organização o melhor das suas esperanças. Se António José de Almeida via na Carbonária a estrutura mais adequada para a demolição das instituições vigentes – e a um tal ponto que fora mandatado pelo Directório para as funções de mediador entre as duas estruturas – já João Chagas lhe colocava algumas reticências. E era natural que também os directores republicanos não quisessem ver-se subalternizados e ultrapassados por uma estrutura que lhes não prestava contas e lhes era substancialmente desconhecida. Por este motivo, foi a João Chagas e não a qualquer um dos expoentes da Alta Venda Carbonária que o Directório republicano solicitou um relatório sobre as fidelidades políticas dos militares mais em evidência na guarnição de Lisboa. Tratou-se de um tomar de pulso da mais alta importância para a fundamentação de próximas decisões. E João Chagas, diligentemente, apresentou este trabalho nos inícios de Novembro.
O gabinete de Venceslau de Lima ia perdendo força e credibilidade. Como já ficou dito, esta era uma solução forçosamente débil, uma vez que não retirava condições de permanência da natural correlação das forças partidárias mas antes as colhia do acervo de afinidades subjectivas que ligavam um monarca ao seu valido. A previsão de uma queda iminente do governo fez movimentar algumas individualidades, que aspiravam ao mando subsequente. Estava neste caso Júlio de Vilhena, que alcançara a hegemonia no Partido Regenerador após luta porfiada. Uma tal expectativa não se apresentava como desmesurada: Júlio de Vilhena era um vulto político bem conhecido, um publicista de boa cepa e um indiscutível paladino do constitucionalismo monárquico. Além disto, dera provas da sua afeição pelas liberdades fundamentais, quando combatera denodadamente a ditadura de João Franco. Conduzia agora o Partido Regenerador, cuja tradição histórica e implantação nacional falavam por si. O jovem monarca conhecia perfeitamente as legítimas ambições de Júlio de Vilhena e concentrava na sua mão, em larga medida, os meios de as satisfazer. Mas os bons velhos tempos das políticas rotativas, fortemente vinculadas ao jogo eleitoral das maiorias, jogo viciado mas operante, esses tempos malabares, mas de previsão fácil, encontravam-se para sempre superados. Agora preponderavam os pequenos golpes palacianos, os cálculos de pressão sobre esse príncipe introspectivo e tímido, as solicitações dirigidas à sua piedosa mãe, as alianças momentâneas, interpretadas por pequenos Maquiavéis de corte. Júlio de Vilhena bem se esforçava por apresentar, no tablado da política nacional, as suas credenciais de pensador, de publicista e de potencial administrador dos negócios públicos. Mas as suas ambições, embora legítimas, embatiam contra o sólido muro dos interesses opostos e contra o bastião das reticências régias.
Quem não descurava a preparação de uma próxima eclosão revolucionária era João Chagas, que no penúltimo mês do ano apresentou aos directores do Partido Republicano um detalhado relatório sobre as correlações das forças republicanas e monárquicas, no que respeitava à guarnição militar da capital. Chagas conhecia muito bem o Portugal de então e sabia que o ronceiro atavismo da província promovia Lisboa ao palco único de um próximo e decisivo confronto. Por isso, todo o seu engenho se aplicava à tarefa de coordenação das reservas revolucionárias lisbonenses.
Quando rompeu Dezembro, os conventículos dos pequenos potentados com influência no Paço e, através dele, na vida política, movimentaram-se febrilmente. Acreditava-se que o gabinete de Venceslau de Lima estivesse por um fio. Ora, indo falhar um governo “de personalidade” – ou “de favoritismo”, segundo muitos maldizentes -, ninguém duvidava que o próximo elenco viesse a ser encabeçado por um regenerador ou por um progressista. Júlio de Vilhena nem sequer vislumbrava a hipótese de vir a ser preterido neste lance. O Partido Progressista já havia tido um protagonismo mais do que suficiente desde o regicídio, sobretudo se as contas não fossem feitas, por miúdo, sobre a contagem dos dias de efectivo poder, mas antes o fossem sobre a ardilosa capacidade de influenciar o sentido dos acontecimentos, em que se especializara José Luciano de Castro. Era tempo, pensava Vilhena, de D. Manuel II manifestar a sua isenção e a sua equidistância em relação às duas formações partidárias. Por isso, a sua decepção não pôde ser maior quando tomou conhecimento de que o governo fora entregue a Veiga Beirão, antigo ministro progressista. Júlio de Vilhena sentiu-se injustiçado e exautorado, pelo que apresentou imediatamente a sua demissão da chefia do Partido Regenerador. Tudo isto estava a ocorrer nos dias imediatamente antecedentes ao Natal. Foi portanto amarga a consoada do desiludido político regenerador. Mas mais amargo viria a ser o Natal do ano seguinte para todos os que interpretavam ou simplesmente secundavam o poder monárquico em Portugal.
2 comentários:
Prezado Amigo,
Gosto da forma como relata esta teia complexa de acontecimentos, deixando-nos perceber que a Monarquia estava irremediavelmente perdida desde, pelo menos, o regicídio. Gosto da forma como nos deixa ver esse pobre rapazinho, que havia sido educado para infante, destinado a casar com uma qualquer princesa de um qualquer reino da Europa de então, alcandorado no trono de Portugal. Mas gosto especialmente da forma como lhe coloca por trás a figura sinistra de D. Amélia, a rainha viúva, que deve ter tido papel de relevo no encontro de Vila Viçosa entre D. Manuel II e Afonso XIII de Espanha. Papel dúbio, como dúbias eram as motivações do monarca vizinho. Mas isto são outras histórias, às quais, por certo, mais tarde, vai dedicar o seu muito saber.
Um abraço agradecido pelas lições, dadas com a simplicidade dos eruditos.
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