17 de fevereiro de 2012

ANO DA GRAÇA DE 1930



Eu precisava de lhe dizer duas ou três coisas. É uma forma de dizer; se calhar, precisava de lhe dizer quinhentas coisas, ou quinhentas mil, sei lá. O que se passa é que, mesmo querendo falar-lhe, eu embato no meu mundo, sabe? Fico por lá, tão soberanamente isolado como um caroço num pêssego antes de ser comido. Se me sinto bem? Mas claro que me sinto bem, neste ano da graça ( ou será da desgraça?) de 1930. Foi ontem, não foi? A “coisa” começou em 1914 e só parou em 1918. Era muito interessante observar o mundo a partir das trincheiras, se não fossem os piolhos, a água chilra, a caganeira e as arengas dos oficiais superiores. Por exemplo, o meu Amigo já observou a “terra de ninguém” antes de um bombardeamento? Aquilo é como a lua, cheia de crateras em sítios errados. Mas o que impressiona mais é o silêncio, um silêncio solene, hirto. Se um silêncio pode ser hirto? Claro que sim. Homem, quero apenas significar-lhe que há silêncios de uma rigidez impressionante. Isto, bem entendido, antes dos bombardeamentos. Quando estes se iniciam, se formos apanhados no meio da “terra de ninguém”, aconselham os manuais a correr para as crateras já feitas. É uma espécie de cálculo de probabilidades, mas sem cálculo. Parece que as bombas nunca rebentam no mesmo sítio. Claro que isto já não se verifica com mortos. Como é que eu sei? Ora essa, foi só olhar… Não está a perceber? Eu explico: o Fadigas (sabe quem era o Fadigas aquele gajo de Faro que dormia por cima do meu beliche e a quem eu dizia “olha lá, se tiveres muito medo, não me mijes em cima”), bem, o Fadigas, numa surtida, foi cortado ao meio por um estilhaço, a menos de meio da “terra de ninguém”; nem chegou a gritar. Teve uma morte santa. Eu ia perto dele e só ouvi uma chiadeira breve, um som parecido com o de uns travões de automóvel em emergência. Depois olhei e lá estava o tronco dele com um buraco do tamanho de dois punhos. Pois bem, eu e mais uns tantos regressàmos à trincheira quase surdos, sim, mas ilesos. Eu não perdi o sentido do sítio onde o Fadigas tinha sido ceifado. Decorei os relevos do terreno, entende? A verdade é que no bombardeamento seguinte, eu vi umas pernas serem projectadas a uma altura de uns três ou mais metros. Só podiam ser as do Fadigas. Por isso é que eu digo: essa coisa de escolhermos uma cratera para safarmos o “coirão” pode funcionar para vivos. Para mortos, não. Caso contrário, as pernas do Fadigas não tinham voado uma data de metros. Memórias do diabo! Mas, olhe, há um consolo que eu e os poucos que escaparam, mesmo gazeados, não poderemos deixar de sentir. A Europa aprendeu. Vai ver que nunca mais tornará a haver uma guerra mundial. Isto lhe digo eu, à fé de quem sou, neste ano da graça ( é da graça, sem dúvida) de 1930.

1 comentário:

João de Castro Nunes disse...

Com a desgraça alheia, Professor,
nunca aprende ninguém: foi sempre assim;
por isso, seja a Europa como for,
nunca se livra deste manequim!

JCN