7 de fevereiro de 2012

À MEMÓRIA DE CHARLES DICKENS E DA SENHORA MINHA MÃE




Correm hoje duzentos anos sobre a morte de Charles Dickens. Foram raros os rapazes da minha geração que o não leram, quer em edições juvenis condensadas, quer em traduções integrais, que no meu tempo de "menino e moço" traziam a chancela das "Edições Romano Torres". Pela mão da minha saudosa Mãe, ao tempo professora de língua inglesa do Colégio de S. Tomás de Aquino, em S. Pedro do Sul, eu comecei pelo "Um Conto de Natal", passei às "Grandes Esperanças", aventurei-me depois pelas "Aventuras do Senhor Pickwick" e desemboquei finalmente no "Oliver Twist" e num dos meus livros mais acarinhados, um daqueles livros aos quais murmuramos, como a uma primeira namorada - "isto é para a vida toda" . Refiro-me a "David Cooperfield". Claro que, tal como nos arroubos românticos juvenis, Charles Dickens iria depois sofrer concorrências poderosas, como as de um Thomas Mann, de um Hemingway ou até de um Steinbeck. Mas o certo é que persistiu sempre, no meu imaginário, aquele "smog" londrino, por onde perpassavam velhos abutres como Fagin, famílias tão singulares como a dos Chuzzlewitt, cocheiros cabeceantes de sono e de emanações etílicas, industriais impantes de Poder, mas de coração razoavelmente empedernido, governantas frustradas e com um lastro de tirania na alma, operários famélicos com residência fixa nos "slums" dos "East Ends" e todas as contradições inerentes a processos de imperialismo colonialista, que atingiram o seu cúmulo nos tempos dessa espécie de divindade tutelar, puritana e orgulhosa: a Rainha Vitória. Claro que, nessas alturas, eu me ficava pelo entrecho mais imediato e perceptível, ou seja, pelo drama dos meninos órfãos, pelos harpejos das meninas casadoiras e pelas garras vorazes dos prestamistas que iam desfilando, pávidos e arteiros, pelas palavras mágicas de Dickens. A minha Mãe, essa, perguntava sempre : "Leste tudo? De que gostaste mais ? Tiraste proveito ?". E eu dizia-lhe que sim a tudo, quanto mais não fosse para que ela me deixasse voltar a escolher um novo volume, no quiosque improvisado da Feira de S. Mateus, em Viseu, onde em Setembro eu sabia ser credor de três volumes, pagos pelo Poder paternal, que também esportulava o gasto das farturas e da Laranjina C. E foi assim que Dickens ficou em mim, impregnando-me a alma e a sensibilidade até aos dias de hoje. Depois vim a aprender outras coisas, que também em Dickens se continham, mas que já exigiam um segundo estrato de compreensão, para o qual se tornavam necessários os instrumentos fornecidos pela História e pela Filosofia. Apercebo-me hoje que Dickens abriu as portas da alma humana, mas só entreabriu as janelas da dignidade humana, pois foi - como, de resto, talvez não pudesse deixar de ter sido, dada a natureza do seu tempo - um coração mais compassivo do que revoltado, num momento da evolução da Humanidade que já requeria denúncias frontais e não tanto súplicas evangélicas. Mas se hoje eu ouvir, descendo do majestoso silêncio dos céus, uma voz que meigamente me pergunta "Leste tudo? De que gostaste mais? Tiraste proveito?" eu irei responder assim, com os olhos marejados de lágrimas (como Dickens) : "Sim, Mãe, li tudo e de tudo tirei proveito; mas, sabes, de quem sempre e sempre gostei mais, foi de ti".

2 comentários:

méli disse...

Caro Professor:
Obrigada por mais este "post". É com muito prazer que sigo o seu blogue. Também eu sou uma admiradora de Dickens! Sobretudo sou uma admiradora de David Copperfield e concordo totalmente consigo quando diz que é um livro para a vida. Personagens como Peggoty, Mr. Dick e até a tia Betsey estarão sempre comigo! E, apesar da época em que são criados, funcionam no meu imaginário como o protótipo da dignidade humana. Mesmo no caso de Mr. Dick e no seu estado de loucura...
Bem, não tenho intenção de acrescentar mais nada ao seu belíssimo texto, apenas de o agradecer.
Um abraço,
Maria Amélia Campos.

João de Castro Nunes disse...

Seu texto sobre Dickens, Professor,
é literariamente primoroso
,
mas acima de tudo é um amor
pelo carinho terno e piedoso
como a Senhora Sua Mãe retrata
nos breves episódios que relata!

Longe de pretender fazer romance,
que entre as estrelas, junto a Deus, descanse!

JCN