Em artigo recente, publicado numa revista semanal de larga audiência, José Gil, que goza com justiça da fama e do proveito de ser talvez o nosso mais competente filósofo vivo, rematava com esta pergunta: “porquê tanto ódio, tanto desprezo, tanto ressentimento contra a figura do professor?”.
Trata-se de uma questão demasiadamente complexa para poder ser exaustivamente tratada no curto espaço de um artigo de opinião. Contudo, talvez seja possível adiantar alguns subsídios de resposta.
Entre os conceitos de ensino e de educação existem diferenças consideráveis. O ensino dirige-se mais, segundo pensamos, à aquisição de competências intelectuais variadas, à apropriação de noções susceptíveis de fazerem a ponte entre o teórico e o prático, ao manejo de conteúdos capazes da tornar os destinatários mais peritos em certas áreas do conhecimento. Por isso se diz que este ou aquele “ensinam” matemática ou biologia, história ou inglês. Seria inapropriado afirmar que eles “educavam” essas matérias. A educação contempla uma vertente primordialmente referida à maturação da personalidade e não tanto à perícia do intelecto. Assim sendo, a educação reporta-se ao plano da assimilação dos valores, da interiorização de padrões aceitáveis (ou mesmo requintados) de sociabilidade, da adequação à vida de válidas formas de conduta. Os órgãos difusores do ensino são as escolas (nos seus diversos graus), os institutos de investigação, nas suas diversas áreas de especialização, ou até os grupos informais que partilham informação. Por seu turno, os núcleos educativos por excelência são as igrejas, os círculos extra-escolares de reflexão e, fundamentalmente, as famílias.
Antes de se fazerem sentir em Portugal todos os efeitos da economia individualista, de cepa liberal e de cariz industrialista, o consenso social recomendava que a escola ensinasse, dando instrução, e que as famílias educassem, formando as almas e as personalidades dos seus elementos, sobretudo dos mais jovens. Porém, uma vez desfeita a família tradicional, através do envolvimento das mulheres na luta pela vida e da expulsão dos anciãos do seu seio (remetidos, como o foram, para asilos, lares ou hospícios), também se desfez o aludido consenso. As famílias passaram a exigir que a escola, através dos professores, cumprisse uma dupla missão: a do ensino e a da educação. Ou seja: os docentes teriam de saber transmitir o corpo de conhecimentos integradores das suas disciplinas e, cumulativamente, deveriam arvorar-se em “tutores do comportamento” dos seus discípulos. E todas as vezes que os professores lamentavam para as famílias, com amargura, as faltas de asseio, o uso de palavrões na sala de aula, as ameaças sobre outros alunos ou sobre eles próprios, os roubos, o uso de drogas leves e pesadas, as vandalizações mais inconcebíveis, as mais inomináveis brutalidades, as famílias, muito empertigadas, passaram a responder, do fundo da sua má-consciência: “mas por que raio é que os professores não os ensinam?”. Evitaram a palavra correcta, “educar”, ladeando a questão nuclear. E por que procederam ( e procedem) assim? Pela elementar razão de que, posta a pertinente interrogação, se tornaria inevitável uma conclusão que as amarraria, a elas, a essas famílias e não aos professores, ao pelourinho da incúria, da demissão, do absentismo ético-social e da mais lastimável incivilidade.
Os professores, sobretudo os do ensino secundário, são hoje a corporação profissional mais desgraçada deste desgraçado Portugal. Pedem-lhe o que eles não podem dar (uma espécie de tutela paterna diferida!), nem são funcionalmente obrigados a dar. As frustrações das famílias médias portuguesas – tais como a escassez de dinheiro, o acanhamento das casas, o anonimato das vidas, a ausência de horizontes de futuro, as misérias morais da Grei, a derrota do clube de futebol, a furo do pneu, etc, etc – são para eles transferidas com a implacabilidade inerente à descoberta de um bode-expiatório. Não se pára um só momento para pensar que um país sem professores motivados é um agregado desnorteado, em vias de inelutável barbarização. O drama poderia ser um pouco mais atenuado através do poder de direcção de uma tutela governamental esclarecida e atenta. Qual quê! A digníssima Ministra Maria de Lurdes Rodrigues gozará, nestes próximos cinquenta anos, da duvidosa auréola de ter contribuído para a perseguição mais inconcebível, para a montaria mais cruel, para a exautoração mais canhestra que algum governo ou poder moveu aos professores portugueses da sua tutela, desde a implantação do liberalismo em Portugal.
É este o pano de fundo sobre o qual se desenha a actual luta dos professores portugueses. Por enquanto, apenas dos que labutam no ensino secundário. Amanhã, caso continuem os despautérios, de todos nós. De todos nós, professores, primeiro. E de todos nós, cidadãos, logo a seguir …
1 comentário:
Meu Caríssimo Amigo,
Por razões que ambos conhecemos, não pode imaginar como tenho andado ocupado e, daí, a minha ausência no seu precioso blog.
Justificado o silêncio, deixe que o cumprimente por esta excelente postagem, em especial pela agudeza da observação e das conclusões a que chega. Mas, curiosamente, ao lê-la veio-me à lembrança uma outra forma de olhar, em relação a Portugal, este problema de educar e ensinar.
Se bem me lembro, foi com a República – a primeira, claro – que se introduziu nas escolas primárias estas duas vertentes da formação do cidadão: o ensinar tradicional, e o educar para a cidadania, através da chamada Instrução Militar Preparatória (IMP). Esta última, na sua acção mais elementar procurava desabrochar nas crianças o amor pátrio, mas, ao mesmo tempo, princípios de comportamento social, ou seja, educava. Essa educação continuava-se, mais tarde, dentro ou fora da escola, pela instrução militar e cívica até à idade da inspecção para o apuramento para o serviço militar.
O Estado Novo, na cópia de uma certa continuidade e introduzindo os princípios da propaganda desenvolvida por Goebbels na Alemanha nazi, criou a Mocidade Portuguesa – tão bem conhecida pelos Homens das nossas gerações – a qual, no fundo, para além dos valores aprovados pelo regime, transmitia, também, valores de uma certa socialização (entenda-se, educação).
Ora, vem tudo isto a propósito de julgar que, afinal, o que falta às nossas escolas e à nossa sociedade é a reflexão profunda do que é a Democracia e dos valores – direitos, mas, acima de tudo, obrigações – por ela impostos. Esta socialização política, mas também cívica, iria suprir, em grande parte, a educação que os pais exigem a escola forneça. Em suma, Portugal virou para a Democracia, mas não educou para a cidadania democrática, em especial, para as obrigações que são de exigir a quem tem de viver em Liberdade, sem jugos nem restrições anómalas.
Concordará o meu Amigo com esta visão do problema tão magistralmente exposto por si?
Um abraço
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