2 de julho de 2008

ESPELHOS DA ALMA ?


A fisiognomonia pretendeu ser a ciência dos rostos. Vinda dos confins da antiguidade, o seu programa consistiu em detectar, a partir de certos sinais fisionómicos, considerados significativos, o segredo da alma humana. Leonardo da Vinci, que não considerava a fisiognomonia uma ciência mas um simples processo de adivinhação, concedia que os traços de um rosto, definidos a partir da articulação mútua da ossatura, dos nervos e da distribuição dos tecidos, pudessem predizer o carácter íntimo da pessoa, o seu perfil moral. Afirmou-o sem hesitação no seu Tratado da Pintura e voltou a corroborá-lo em certas obras suas, menos divulgadas do que obras-primas como A Ceia e a Gioconda. Referimo-nos às suas caricaturas grotescas, uma das quais reproduzimos. São rostos feios, mas de uma fealdade toda natural. Olhamo-los e é legítimo que pensemos que os poderemos encontrar ao sair de casa, se descontarmos as vestimentas da época e só atendermos às expressões. Efectivamente, existem rostos de uma doçura infinita; outros há que exprimem uma incontrolável tensão e uma violência sem disfarce; outros supuram lascívia, ou bondade, ou inveja, ou preguiça, ou displicência. Talvez possamos conceder que o rosto seja um “espelho da alma”, reflectindo nele o que temos de melhor ou de pior.
Mas continuaremos a considerar a fisiognomonia uma disciplina perigosa. É que ela tem a pretensão de nos conduzir do aparecer ao ser, ou seja, de nos levar do fenómeno visível à autenticidade invisível. O que vemos é só um produto sob a forma de imagem, uma imagem modelada por malares, maxilares, dentes, rugas, protuberâncias, etc. O julgamento através da imagem, do aparecer, corre o risco de conceder demasiado espaço ao preconceito. É mais seguro julgar o próximo através da acção, do que ele efectivamente faz. É mais seguro e, sobretudo, mais justo. O rosto pode enganar. O acto está lá. Podemos analisá-lo nos mínimos detalhes, sopesá-lo no seu intrínseco significado, atribuir-lhe sentido. Que a navegação não se deixe encantar pela beleza das faces. A beleza dos actos é mais incorpórea, sim, mas é também muito mais taxativa. Foi o canto e o rosto das sereias que arrombou o casco a muitas navegações incautas ...

2 comentários:

Luís Alves de Fraga disse...

Caro Amigo,
Como são ponderadas e sensatas as suas palavras!
Nunca como hoje a arte de Talma esteve mais presente nos políticos (em todos e, por isso, também nos nossos)! E, assim sendo, como os seus rostos nos enganam! Sorriem e mostram-se confiantes em plena tempestade.
Como diz, e muito bem, é pelos actos que os temos de julgar. Faces bonacheironas, descontraídas, sem o mais leve traço de preocupação nada nos garantem… Temos de lhes olhar para os actos e ponderá-los com a cautela que quem usa uma balança de ourives.

Estarei enganado ou, quando vivíamos sob o jugo da ditadura, o provérbio popular era mais verdadeiro, pois ao verem-se caras quase se descortinavam corações? Terá a democracia algum perverso sistema capaz de nos alterar comportamentos?
Um grande abraço

Anónimo disse...

CARAS E CORAÇÕES

Segundo Leonardo, o nosso rosto
permite ler o nosso interior
como um espelho à nossa frente posto
com todo o seu poder revelador.

Nem sempre assim será, seguramente,
havendo em rostos feios almas belas
e formosura apenas aparente
em corações repletos de mazelas.

Mas em princípio eu creio na doutrina
da suma autoridade florentina
que encheu de enlevo a minha mocidade.

Um claro exemplo és tu, amada minha,
cujas feições rivais das da "Purinha"
eram penhor da tua... intimidade!

João de Castro Nunes