17 de fevereiro de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO V

Mudar Portugal, cerne do programa republicano

 Quem eram e como se organizaram os que, por volta de 1870, pretenderam difundir em Portugal a nova cartilha do republicanismo? Em termos numéricos, estavam bem longe de ser uma multidão. Identificavam-se, sociologicamente, com os estratos da pequena e média burguesias, encontrando-se munidos de alguma formação literária de base. Tenhamos presente que o republicanismo foi entre nós um fenómeno de propaganda urbana. Os campos permaneciam cativos dos caciques, os quais, pela superioridade da formação escolar ou pela hegemonia da condição económica, logravam sujeitar a numerosíssima hoste dos lavradores sem terra, dos agricultores sem agro, numa palavra, dos possuidores de uma despojada e submissa força braçal. As realidades camponesas, trabalhadas pelo padre da aldeia e pelo proprietário fundiário, pelo boticário, pelo mestre-escola e pelo “notável” local, eram completamente refractárias à difusão de quaisquer novidades político-ideológicas. Os que sabiam ler e reflectir encontravam os seus cómodos e os seus modos de vida nas cidades. Foi nas cidades, por isso, que despontaram as primeiras veleidades e os primeiros clamores de dissentimento em relação à monarquia constitucional que, segundo a terminologia oficial do tempo, “felizmente nos regia” …

   Como os campos portugueses podiam ser talhados, qual carne morta, pelos “notáveis” da região, sobravam as cidades como focos potenciais de rebelião. Era nelas que se aglomeravam os pequenos e médios comerciantes por conta própria, os funcionários públicos de carreira, os possuidores de fabriquetas semi-improvisadas, os protagonistas de profissões liberais (advogados, médicos, professores-leccionistas, profissionais de tecnologias rudimentares, etc). Ao contrário de todo o resto do país, estes agentes sociais sabiam que em 1848 houvera em França uma revolução, fundadora de uma República que instituíra o sufrágio universal; comentavam o advento ao Poder, nessa mesma França da Segunda República, de representantes socialistas, para assombro do mundo e pavor de camadas burguesas endinheiradas. Também nesses círculos se argumentava sobre as vantagens e perigos eventuais do programa descentralizador da Comuna de Paris, bem como sobre o ideário do republicanismo espanhol e sobre as teorias sociais, radicalmente inovadoras, de Proudhon, Saint-Simon, Auguste Comte, Spencer e de tantos outros.

O movimento republicano português nasceu do funcionamento informal de tertúlias citadinas, reflexivas, dialogantes e agregadoras de gente com algumas letras. Era gente identificada com certa burguesia economicamente modesta, embora auto-suficiente. Esses círculos foram os primeiros a reflectir sobre a profunda decadência do país e sobre a enormidade da distância que separava a realidade portuguesa daquela que era vivida para além dos Pirenéus. Portugal arrastava o peso de uma população ignorante e miserável, facilmente manipulável pelos detentores do mando. Era um país vergado ao atavismo de uma economia quase exclusivamente agrária, com um comércio pouco desenvolvido e com uma indústria anémica, concentrada em insignificantes manchas na cintura de Lisboa e Porto. As vias-férreas tinham chegado com um atraso de cerca de sessenta anos; as estradas dignas desse nome quase não existiam, pois preponderavam as veredas escabrosas e os trilhos entre pinhais, sempre sujeitos ao iminente perigo dos vagabundos e salteadores de estrada. Uma viagem entre Lisboa e o Porto, feita de diligência, obrigava frequentemente os transportados, moídos da estafa, a pernoitar numa qualquer malaposta, a meio do percurso. A fome camponesa era uma insofismável realidade. A abastança apenas privilegiava minorias insignificantes, ainda que poderosas do ponto de vista da afirmação social. E os poucos grandes burgueses que tinham sido promovidos à dignidade da nobilitação, através da compra, ao desbarato, de bens nacionais, preferiam especular na Bolsa ou comprar títulos de dívida pública a investir em empresas e negócios de risco.

É necessário que isto se compreenda para que nos apercebamos da verdade de uma situação que esses primeiros republicanos portugueses desejaram mudar radicalmente: mudar, sim, para benefício da maioria dos portugueses e de Portugal.

3 comentários:

Meg disse...

Ideais? Lembro-me deste pensamento:
"Um homem não descobriu nada pelo qual morreria, não está pronto para viver....." M.Luther King
Porém a forma de idealizar vai declinando à medida que se vai recheando o ser de experiências,com evidência para as que deixam cicatrizes...
Guida Vizeu

Anónimo disse...

MORRER POR IDEAIS

Os ideais não morrem: sobrevivem
à própra morte física e até,
sob os efeitos do calor da fé,
de quando em vez parece que revivem.

Ter ideais é ter, logo à partida,
razões para existir, não merecendo
de modo alum continuar vivendo
quem não por eles souber dar a vida.

Os ideais não são questão de idade
pois tanto afloram quando se envelhece
como igualmente em plena mocidade.

Deus queira, pois, ouvir a minha prece,
forças me dando para, se clhar,
por eles sucumbir sem vacilar!

João de Castro Nunes

Anónimo disse...

Corrijo, no penúltimo verso, a gralha "se clhar", que está por "se calhar". Acidentes de percurso!

JCN