Os portugueses foram surpreendidos, em 30 de Outubro de 1858, por um singular decreto, directamente emanado da Casa Real. Por ele, o rei D. Pedro V afectava trinta contos de réis da sua dotação constitucional para que, com os juros daí resultantes, se pudessem fazer funcionar em Lisboa cursos públicos de História, Literatura Antiga e Literatura Moderna, contemplando esta última, sobretudo, a criatividade literária portuguesa. Desejava o monarca lançar os alicerces de uma Faculdade de Letras, por entender (e bem) que os estudos da velha Universidade de Coimbra se encontravam mais voltados para a Teologia do que para uma cultura humanística vanguardista, próxima dos anseios da época. Amigo de Alexandre Herculano, que lhe incutira o gosto pelos conhecimentos históricos, educado por António José Viale, que o iniciara nas literaturas greco-latinas, espírito curioso e em contacto com os mais avançados países europeus, D. Pedro V constituiu um caso muito peculiar e positivo na galeria da dinastia de Bragança.
Ao fundar o Curso Superior de Letras, o jovem rei aspirava aos benefícios de um saber avançado, capaz de fomentar ou refundar um requinte filosófico, moral e estético que os seus avoengos não tinham proporcionado ao país. Os primeiros convites para o professorado obedeceram às preferências do rei-instituidor, o que se compreende sem esforço. Alexandre Herculano foi instado para a História, mas recusou polidamente. As literaturas clássicas ficaram entregues a António José Viale, que seria, além disso, o primeiro director do Curso. António Feliciano de Castilho foi sondado para as literaturas modernas e considerou-se incompetente para a tarefa, sugerindo o nome de Latino Coelho. Mas este navegava pelas águas do republicanismo e o preferido acabou por ser António Pedro Lopes de Mendonça, autor de um livro premonitório, intitulado Memórias de um Doido. A verdade é que a loucura, de facto, o acometeu, impedindo-o de assumir tais funções.
A curiosidade da evolução pedagógica e institucional do Curso Superior de Letras está em que essa nota de avanço cultural e de vanguarda cognitiva, desejada por D. Pedro V, lhe será conferida por personalidades em estado mental de ruptura com as instituições monárquicas. A regência provisória da cadeira de Literaturas Modernas foi parar às mãos de Augusto Soromenho, que não se identificava com o regime então vigente. Foi ele que incitou Teófilo Braga a concorrer à vaga da disciplina por si deixada, ao transferir-se para a docência da História Universal e Pátria, que ficara deserta devido ao falecimento de Rebelo da Silva. O concurso de 1872, ao qual se apresentaram dois candidatos claramente apoiados pela Monarquia (Manuel Pinheiro Chagas e Luciano Cordeiro) e um notoriamente afecto ao republicanismo (Teófilo Braga), saldou-se por um êxito inesperado mas justíssimo do candidato dissidente. A Teófilo e Soromenho veio juntar-se, em 1878, Adolfo Coelho, um dos antigos oradores das Conferências Democráticas do Casino, onde criticara acerbamente o sistema ultrapassado, monástico e acrítico do ensino público em vigor. Logo no ano seguinte, em exposição fundamentada dirigida ao Conselho do Curso e às tutelas oficiais, Teófilo Braga, agora apoiado por Vasconcelos Abreu, apresentou a sua proposta de converter o Curso Superior de Letras numa verdadeira Faculdade Sociológica. Era um ponto de vista muito aliciante, atendendo ao facto da Sociologia viver uma fase de maré alta no seio de muitas instituições europeias de ensino. Mas esta disciplina fora criada pelo génio de Augusto Comte e pelo talento sistematizador de Emílio Littré. O positivismo era encarado, entre nós, como uma ameaça à hegemonia monárquica. Foi por isso que tal proposta não vingou, mesmo depois de reiterada e mais solidamente fundamentada em 1899.
A dobragem do século XIX para o século XX foi feita dramaticamente entre nós. Nunca talvez a palavra “crise” tenha sido usada com mais propriedade: crise financeira, crise cultural, crise institucional, crise de desemprego e fome, crise colonial, crise de existência e de consciência, crise de valores e de valias. D. Pedro V, que o próprio Teófilo saudou como um “rei de boa vontade”, era só um espectro, uma miragem de além-túmulo. Morrera cedo e mal, ceifado por uma moléstia pandémica. Mas se a tensão das vontades e a persistência dos ideais não são dissolvidas pelas Parcas, o generoso monarca, que dera mostras, em vida, de algum sentido de humor, talvez tivesse sorrido quando a República, acabada de fundar, decretou, em 9 de Maio de 1911, a criação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Herdeira directa do Curso Superior de Letras, ela realizava, finalmente, o sonho do defunto monarca.
4 comentários:
UM REI ENTRE ESTUDANTES
Discreto, culto, estudioso e bom,
é aasim que o vejo, ouvindo as prelecções
de Alexandre Herculano,
cujo dom
de historiador lhe prende as atenções.
De resto, entre o cuidado de reinar
de acordo com a sua consciência
sem a Constituição desrespeitar,
passou sua brevíssima existência.
Como poucos amou a sua Esposa
que tão cedo o deixou, D. Estefânea,
por quem nutria uma afeição pasmosa.
Que lindo foi, na terra das tricanas,
ouvir dos estudantes, espontânea,
a grita de académicos hossanas!
João de Castro Nunes
A ANTIGA FACULDADE DE LETRAS
DE LISBOA
Passaram por aquela Faculdade,
instituída por D. Pedro Quinto
na Academia Régia da cidade,
sábios que deram fama a esse recinto.
Não vou citar ninguém, não vale a pena,
a não ser o António Zé Saraiva,
que a situação política condena
e cheio, um dia, de incontida raiva,
afirma que é tão baixo o pavimento
daquela Casa que, para entrar nela,
é preciso descer ao nível dela!
Ao que se apressa logo a retorquir
o Director, sem perda de um momento:
- "Mas para sair dela... há que subir"!
João de Castro Nunes
D.PEDRO V:
O REI-SOLDADO
Adoro falar dele: é um soberano que muito estimo pela sua mente
de elevada craveira e lado humano
do seu carácter culto e complacente.
Se todos os monarcas assim fossem,
ainda hoje vigorava a monarquia
sem pessoas haver que dela trocem
com laivos de sarcasmo e de ironia.
Morreu na flor da idade, lamentado
por todo o povo que ele cativava
pela nobreza com que se portava.
Algumas vezes terá mesmo dito,
o que não deixa, em si, de ser bonito,
que, a não ser Rei, queria ser soldado!
João de Castro Nunes
Corrijo a primeira quadra do soneto anterior:
Adoro falar dele: é um soberano
que muito estimo pela sua mente
de elevada craveira e lado humano
do seu carácter culto e complacente.
JCN
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