A crise (económica, financeira, cultural, institucional, crise de desemprego e fome, crise colonial, crise de existência e de valores) foi uma palavra e circunstância que marcou o período envolvente à implantação da República, em 1910. Que semelhanças e/ou diferenças se podem encontrar entre a dobragem do séc. XIX para o séc. XX e a actualidade?
Há semelhanças, decerto, mas também há grandes e notórias diferenças. As semelhanças provêm de vários factores, nomeadamente de factores económicos. É evidente que a dobragem do séc. XIX para o séc. XX arrastou uma crise que já vinha de 1890. Houve um colapso económico generalizado e houve aspectos muito semelhantes aos que hoje existem. À semelhança do que hoje se verifica, a economia entrou em colapso e houve encerramento de empresas, o que gerou muito desemprego. Mas, ao contrário dos tempos de hoje (pelo menos até ao presente momento), a crise dos anos 90 foi tão profunda que originou uma suspensão de pagamentos dos vencimentos dos funcionários públicos. Essa crise foi ampliada pela circunstância da falta de garantias cívicas e políticas. Foi uma crise de liberdade, potenciada e ampliada pelo próprio Rei D. Carlos. A ditadura de João Franco veio a seguir e tudo isso conduziu à Revolução Republicana. Hoje, a diferença está em que, apesar das dificuldades que a crise actual coloca, por enquanto ainda continuamos a gozar de garantias de cidadania que naquela altura foram postas em causa.
Em que medida o mundo do trabalho, com a “questão social” e as dramáticas condições de vida da classe trabalhadora, com várias greves (mesmo que ilegais) foram decisivos na aceitação do republicanismo?
O Republicanismo foi uma doutrina que surgiu em Portugal trazida fundamentalmente pelas preocupações da classe média-baixa. Ao contrário do que acontecia na velha Europa, em Portugal não havia um tecido social e económico desenvolvido. Não éramos um país industrializado. Lá fora, a chamada classe operária, os trabalhadores da indústria, reviam-se mais no Partido Socialista do que no Partido Republicano. Entre nós o movimento foi idêntico pois centrou-se em Lisboa, na sua cintura industrial, sobretudo localizada na zona de Setúbal, onde houve a eclosão de certos movimentos grevistas, de operários identificados com o ideário socialista. Mas esse élan acabou por se perder justamente porque esse movimento não tinha uma correspondência com o resto do país, que não possuía o índice de industrialização necessário.
Assim os Republicanos tentaram (muito inteligentemente, aliás) captar para o seu lado o proletariado, aconselhando-os a pôr entre parêntesis as reivindicações económicas, a não recorrer à greve e a travar a luta política, fomentando a perspectiva de que com as eleições e o processo eleitoral se poderia instalar uma República que daria depois resposta aos anseios do operariado,
Mas as coisas acabaram por não serem rigorosamente assim, sobretudo porque a primeira República enfrentou terríveis dificuldades, algumas das quais vindas já do regime constitucional anterior. Os Republicanos tiveram que inventar um regime político com os cofres inteiramente vazios e poucos anos depois entenderam (e bem na minha opinião) que deveriam travar a Primeira Grande Guerra ao lado de Inglaterra. Portanto isso fez com que os Governos Republicanos não pudessem nem tivessem condições para atender às reivindicações operárias. Essa a razão pela qual uma figura como Afonso Costa foi apelidado de racha-sindicalistas, porque não tinha ao seu alcance quaisquer meios para atender às reivindicações dos operários e dos trabalhadores por conta de outrem.
Liberalismo, Anarquismo, anarco-sindicalismo, socialismo, comunismo…muitos ismos despontaram então, respondendo aos ecos distantes de acontecimentos radicais pelo mundo. Cem anos passados, aprendemos com a História a fazer melhores escolhas?
O séc. XIX foi justamente o século dos ismos porque houve uma pluralidade de tendências e correntes muito diversificadas. Podemos dizer que no decurso do séc XIX sobretudo na área da esquerda, a corrente com a qual se identificavam os proletários, os trabalhadores fabris, nem sequer era um Partido Socialista ou Comunista. A corrente com a qual os trabalhadores se identificavam e que os fascinava era mais a corrente anarquista. Portanto o séc. XIX foi um século fervilhante, com muitas clivagens, com um confronto de gerações sujeitas a propostas muito dissemelhantes, ao contrário do que acontece hoje. Hoje estamos perante formas ideológicas muito típicas, com a sua carga doutrinária muito precisa, mas a grande clivagem que verificamos está nisto: mais do que a escolha de um partido político, seja ele qual for, o que preocupa mais hoje o cidadão é o desejo de concretização da justiça social – portanto hoje assiste-se a uma certa subalternização da ideologia pura e dura e assiste-se, por outro lado, a um acréscimo de reivindicações de natureza social que impeçam que a classe média seja eliminada ou proletarizada e que favoreçam a salvaguarda da dignidade fundamental do trabalho.
Recorrendo a uma expressão sua, quem foram afinal os cavaleiros da Távola Redonda Republicana?
Foram sociologicamente homens da “burguesia magra”, ou seja, pequenos comerciantes, donos de pequenas fábricas e bastantes trabalhadores liberais. E também um grupo bastante sólido e amplo de professores de todos os graus de ensino. Esses foram o fermento aglutinador que originou todo este movimento que começou fundamentalmente nas cidades. Ao tempo, o movimento Republicano teve origem nas três maiores cidades – Lisboa, Porto e Coimbra (nessa altura, Coimbra era a terceira cidade do país) . O movimento republicano iniciou-se nessas cidades e só muito lentamente é que o movimento acabou por se transferir para as cidades capitais de distrito. Há uma coisa que é óbvia : a realidade rural, a sociedade rural ficou perfeitamente distante e alheada do que significava o Republicanismo. Por um lado porque era uma sociedade com taxas de analfabetismo avassaladoras ; e por outro lado porque actuavam junto desses pequenos meios um conjunto de caciques que preparavam e dominavam a opinião pública local, orientando-a no sentido que melhor lhes convinha.
Os cavaleiros da Távola Redonda Republicana foram homens como Teófilo Braga, António José de Almeida, Alves da Veiga, Sebastião Magalhães Lima, Afonso Costa, José Elias Garcia. Foi gente dessa que conferiu à República o conjunto de ideias de base que ainda hoje a definem.
A contribuição das mulheres republicanas, dentro do que lhes era permitido fora do espaço doméstico, foi ainda assim notória. Temos feito justiça, neste Centenário, também a estas revolucionárias?
Não. Muito embora as mulheres tivessem tido uma actuação de luta pelos seus direitos cívicos, elas não foram reconhecidas pelo próprio Partido Republicano da altura. Mesmo depois da implantação da República lhes foi negado o direito de voto. A mulher portuguesa (a mulher europeia no geral) alcança muito tarde os seus direitos fundamentais. No Republicanismo é notório que houve pouca solidariedade para com a luta emancipadora das mulheres e os próprios republicanos foram reticentes quanto à hipótese da mulher tirar um curso superior. A Universidade de Coimbra foi muito renitente à abertura das suas portas às mulheres. Elas não desempenhavam cargos políticos, não pertenciam a directórios republicanos. A luta das mulheres foi uma luta heróica, porque tiveram de fazer o caminho absolutamente sozinhas.
Maria Veleda, Ana Castro Osório, Carolina Michaelis, Adelaide Cabete e outras foram exemplos absolutamente excepcionais. Tal como hoje, as mulheres tinham que comprovar uma competência muito superior à do homem para conseguirem impor-se.
Alguns grandes valores legados pela República estão hoje a ser subtilmente ameaçados. Pode apontar-nos um ou mais destes valores que importe salvaguardar a todo o custo?
O valor fundamental foi o valor do serviço público, prestado honradamente. Inclusivamente os nossos primeiros chefes de Estado, no decurso da Primeira República, foram homens de extrema singeleza de costumes. Há fotografias de Teófilo Braga, a andar nos transportes públicos de Lisboa. Isto diz tudo. Sabemos que Bernardino Machado até era troçado por alguns adversários por ser afável e por cumprimentar toda a gente, independentemente da sua importância social ou económica. Era representado nas caricaturas como estando sempre a tirar o chapéu…Portanto era gente SIMPLES, que não enriqueceu à custa do erário público. O que mais custa a suportar, neste momento, por parte de uma filosofia republicana escorreita e transparente, é assistirmos a esta situação de delapidação e de aproveitamento pessoal, pouco escrupulosa, dos meios públicos e dos recursos que, saído dos impostos, deviam ser gastos com utilidade geral e com honradez total.
Em que medida o espírito republicano original inspirou os percursos de resistência (individuais e colectivos) desde a ditadura desde 1926, até à alvorada de Abril de 1974?
A Primeira República, sobretudo a partir do Sidonismo, em 1917, entrou em processo de dilaceração. Como o poder caiu nas ruas, foi necessário que o elemento militar se pronunciasse. Num primeiro momento até se imaginou que os militares - no início liderados por Mendes Cabeçadas - iriam repor uma certa ordem nas ruas e nas consciências e depois devolveriam o poder aos Partidos existentes, aos grupos de pressão. Mas não foi assim. A ditadura militar perenizou-se. Mendes Cabeçadas foi ultrapassado e militares como Gomes da Costa e outros apareceram, iniciando um caminho em linha recta que levou ao Estado Novo, ao salazarismo e ao marcelismo.
A luta contra o Estado Novo foi protagonizada por uma ampla frente de sensibilidades. Foram sem dúvida os anarquistas, os socialistas, os comunistas um pouco mais tarde, foram os sociais-democratas, foram mesmo os homens de uma igreja progressista que combateram as prepotências políticas, sociais e culturais daquele tempo e daquele regime. Os republicanos foram sempre dos mais activos contra o Estado Novo, que até os designou de “Reviralhistas”.
É certo que houve republicanos, sobretudo os mais conservadores, que depois se transferiram com armas e bagagens para o interior do próprio Estado Novo. Mas isso é uma constante na história dos povos. Quando existem mutações político-sociais que se apresentam para durar, há sempre quem, sem convicções profundas, queira apanhar o barco, para poder pescar em águas turvas.
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