27 de janeiro de 2011

MEMORIAL REPUBLICANO LXII

Machado Santos, o "herói da Rotunda"

LXII - A VITÓRIA DA ROTUNDA (2)

Por esta altura, já o movimento revolucionário era abertamente discutido pelos lisboetas, em botequins e nas raras casas comerciais que se atreviam a abrir, com os taipais meio-corridos. O jornal republicano O Mundo declarara o seu aplauso à causa da Rotunda. Lisboa passou a acrescentar mais um brado ao seu rumor habitual. Por ruas escusas ou avenidas mais largas, começaram a ouvir-se os gritos, ainda por então sediciosos, de “Viva a República!”. Nos primeiros alvores do dia 5 de Outubro, um diplomata alemão, Encarregado de Negócios do Kaiser, dirigiu-se ao Quartel-General monárquico e solicitou uma suspensão das hostilidades durante uma hora, para que, segundo a sua proposta, os súbditos germânicos pudessem sair da cidade com toda a segurança. Era um gesto que apenas visava reforçar o prestígio teutónico, atendendo ao facto de serem quase inexistentes as pessoas de tal nacionalidade em efectivo estado de risco. Para que o armistício tivesse viabilidade, era necessário ser também aceite pelo comando republicano. O general Gorjão escreveu uma carta explicativa das intenções do Encarregado, arranjou-lhe uma escolta militar e aconselhou-lhe a que procurasse entender-se também com a parte oponente. E eis que o Encarregado, sob a protecção de uma escolta que ostentava uma bandeira branca, sobe a cavalo a Avenida, em direcção à Rotunda. Seriam oito horas e quinze minutos da manhã. O povo de Lisboa atribuiu imediatamente à bandeira o significado simbólico da rendição. A partir de então, explodiram incontidamente as manifestações populares de júbilo e a onda da “arraia-miúda”, liberta de recentes medos, inunda literalmente o teatro das hostilidades. No Rossio, populares entusiastas desfazem completamente as formações militares e convivem alegremente com as tropas. Quando o Encarregado de Negócios da Alemanha chegou à fala com Machado Santos, já este tinha obrigado a escolta a bandear-se com a parte republicana. Depois de algumas palavras rudes travadas entre os dois, é cometido a António Maria da Silva o encargo de redigir os termos do armistício. Ficou escrito que a suspensão de hostilidades se iniciaria às oito horas e quarenta e cinco e cessaria uma hora depois. Não havendo já escolta, Machado Santos dispõe-se a acompanhar o diplomata alemão ao Quartel-General. Seriam pouco mais do que oito e meia da manhã. Ao descer a Avenida a cavalo, o comandante da Rotunda é ovacionado por populares lisboetas, arrancado da garupa do animal e levado ao colo até ao destino. Chega ao Quartel-General desalinhado, coberto de pó e sem uma dragona, que lhe tinha sido subtraída pelas efusões apoteóticas a que fora sujeito. Assim se apresenta perante um general Gorjão completamente desalentado, por ter reconhecido a balbúrdia indisciplinada e festiva que se instalara no Rossio. Apesar de tudo, ainda encontra força e dignidade para interpelar gravemente Machado Santos, acusando-o de ter violado o armistício. Ao que este, olhando para o relógio, lhe replica que, sendo oito horas e quarenta e quatro minutos, faltava um minuto para o seu início. Depois, declara-lhe que a República havia sido declarada. Antes de se render, Gorjão manifesta as suas apreensões pela segurança do rei e recebe de Machado Santos uma resposta tranquilizadora.

Enquanto decorriam estes decisivos lances, os membros do Directório republicano proclamam a República e formam o governo provisório, presidido por Teófilo Braga, na Câmara Municipal de Lisboa. Eram cerca de nove horas da manhã quando Eusébio Leão, Inocêncio Camacho e José Relvas, cercados por outros republicanos, se dirigem da varanda do município ao povo da capital, apinhado no largo fronteiro. Leram a declaração da abolição da monarquia, o manifesto de proclamação da república e os nomes previstos para o governo provisório. Cessava o tempo dos militares e iniciava-se o tempo dos políticos. Às onze horas da manhã tiveram fim as solenidades no edifício da Câmara. A festa transbordou para a rua, traduzida em “entusiasmo, bandeiras hasteadas, exclamações, palavras, gritos”, no dizer quase fotográfico de Raul Brandão. Não faltou também a nota romântica, no telegrama com que Guerra Junqueiro saudou o governo. Nele se dizia, nomeadamente: “A alma da Pátria desabrocha, vitoriosamente, em flor de luz, em flor de ideal”.

A República estava feita? Estava. Mas hoje sabemos, talvez mais seguramente do que nunca, que ela, na sua dimensão mais exigente e essencial, está sempre por fazer. A sua perenidade reside precisamente nisto.

9 comentários:

João de Castro Nunes disse...

A República, em verdade,
longe está de ter chegado
ao seu virtuso estado
de regime de igualdade!

JCN

João de Castro Nunes disse...

Apesar de ser profunda
esta falha social,
não seria menor mal
voltar de novo à Rotunda!

JCN

João de Castro Nunes disse...

Na 1ª quadra, corrijo a gralha "virtuso" por "virtuoso". JCN

João de Castro Nunes disse...

Se, porém, for necessário
voltar de novo à Rotunda,
sempre há-de haver uma funda
na bolsa de un voluntário!

JCN

João de Castro Nunes disse...

É pena que na Rotunda
que no presente circunda
o monumento a Pombal
não se encontre um só sinal
assinalando o local
adonde há mais de cem anos
os bravos republicanos
lutaram pelo regime
que hoje em dia nos oprime.

JCN

Luís Alves de Fraga disse...

Caro Amigo, um relato mais preciso e mais sintético seria impossível, sem perder, todavia, a oportunidade de relembrar pormenores curiosos como o da dragona. Machado Santos, na falta de graduação militar de vulto, havia decidido fardar-se de grande gala para impor mais respeito e maior e melhor impressão entre os soldados e os fiéis carbonários. Foi a ele, sem dúvida, que se ficou a dever a República em Lisboa e, por arrastamento, em Portugal. Todavia, não foi ele quem a proclamou da varanda da câmara municipal. Esse facto terá estado na indisposição que logo na altura nasceu entre ele e o Partido Republicano Português? Foi-lhe recusado um protagonismo político que Machado Santos desejava, reconhecendo-se nele (somente) a coragem de se ter mantido fiel à revolução planeada. Queria mais. Queria um papel político que lhe não foi dado. Assim nasceu um inconformado que, depois de ter apoiado Sidónio Pais na sua aventura ditatorial, veio, mais tarde, a morrer à mão de assassinos a soldo de forças obscuras ainda hoje desconhecidas.
Desculpe-me o facto de me ter alargado para além do que seria conveniente, mas Machado Santos continua a ser uma figura controversa e, por isso, apaixonante para qualquer estudioso da República.
Um abraço, com muita admiração.

João de Castro Nunes disse...

Quando um herói se apresenta
a faltar-lhe uma dragona,
seu perfil se desmorona
e toda a gente o lamenta!

JCN

João de Castro Nunes disse...

Se um dia houvermos de enfrentar as balas
outra vez na Rotunda, haja atenção
que mais que qualquer tiro de canhão
vale a nossa razão... para enfrentá-las!

JCN

João de Castro Nunes disse...

Para não envelhecer,
a República precisa
de estar sempre a renascer;
caso contrário, agoniza!

JCN