14 de fevereiro de 2011

HAVANA ; HAVANA ...

O que acontece é que só nos repetimos. Julgamos falar para o Universo, para todos os vivos e até para todos os mortos, quando afinal nos limitamos a dizer de nós, sempre e só de nós, como uma melopeia, a mesma cançoneta. É como se fossemos um daqueles solipsismos melódicos de certas canções cubanas, onde aparece sempre a voz metálica dum refrão a repetir incansavelmente as mesmas notas. Percebi isto, com muita clarividência emocional, em Havana, quando me consegui escapulir do guia que nos levava, como rebanhos, pelos recessos da cidade esventrada, na tentativa insólita de recuperar inutilmente a aura similar à de um Cadillac cataléptico e de cromados já amarelecidos. A receita turística dos Castros repetia-se incansavelmente : levavam-nos, de cambulhada, para uns pátios sem graça, onde se faziam ouvir as notas arrastadas de Carlos Puebla a celebrar o Comandante Imortal e depois se estorciam umas patéticas marafonas, de gâmbias desnudadas, procurando dar vida a uma cenografia virtualmente erótica, mil vezes repetida.

Fui passear para o Malecón. O Malecón não é mais do que um passeio rente ao mar, cheio de pescadores de canas improvisadas e de olhos fitos mais no além da América do que no picar improvável do peixe. No Malecón há desesperos. E putas para turistas. Ciranda-se por lá como se fosse um roteiro sem fim. Um autóctone, escuro e de bigode, interpelou-me, perguntando se eu poderia estar interessado em “donzelas virgens de catorze ou quinze anos”. A verdade é que me ouviu dizer que estava mais curioso da memória de Hemingway e que as meninas poderiam ficar para mais tarde. De Hemingway não sabia nada. Só de jovenzinhas. Ofereceu-me um “puro”, contra a eventual permuta de uma “gilette” descartável. Como não tinha comigo a “gilette”, fiquei também impedido de baforar o “puro”. Também me interrogou sobre se já tinha visto a Praça da Revolução. Disse-lhe que sim, que tinha estado lá, naquele terreiro vazio e calcinado, com a caricatura do Che desenhada com hastes de ferro na parede de um Ministério qualquer e com um fálico monumento a memorar o passado heroísmo dos barbudos da Sierra Maestra.

Havana afigurou-se-me como ponto nodal da relatividade da vida. É que a percepção da decadente nostalgia consegue ser tão forte, tão omnipresente, que nos damos conta que um dia, depois da pletora das forças vitais, todos nós iremos ser assim.

Fui a Havana duas vezes, em dois tempos diferentes. Eu, diferente também. Mas Havana igual a si mesma, das duas vezes. Das duas vezes vi velhas vestidas de branco a cobrar um ou dois dólares por fotografia que se lhes quisesse tirar. Das duas vezes peregrinei por lá, demandando as balas dos insurgentes em fachadas pulverulentas. Das duas vezes fui à Bodeguita del Medio, transitando por ruas fedorentas para beber um “mojito”, pretensamente intelectual, acotovelando gentes a baloiçar-se entre a fruição do exotismo e a libertação etílica.

Repetir Havana é ter a certeza de que somos tautológicos. Mas a vista geral da cidade, do cimo de um decrépito hotel de comprovada centralidade, é a evidente certeza de que continuamos, nós, os Cadillacs fanados da estranja, a perceber, para além dos prédios de pintura velha e descascada, e também das prostitutas e das velhas de charuto nos dentes, e do ridículo “cliché” oficial, e dos proxenetas do Malecón, que todos nós, todos, sem excepção, acolhemos nas funduras de nós próprios a esperança de que um dia tudo se recrie e renove, nas ruas, nas praças e nos lupanares de nós mesmos.

1 comentário:

João de Castro Nunes disse...

OURO FALSO

Deus queira, Professor, que na velhice
não tenhamos o aspecto degradado
de certas criaturas, cujo estado
todos os visos tem de pelintrice!

Fujamos de cair na tentação
de falsas lantejoulas ostentar,
querendo dar a tola sensação
de sermos um país a prosperar!

Que triste deve ser, conforme diz,
nos tempos actuais o panorama
da velha Havana, feita meretriz!

Antes uma pobreza sem penúria
que desde logo rastejar na lama
de uma inequívoca opulência espúria!

JOÃO DE CASTRO NUNES