Encaminham-se para o fim as celebrações relativas ao centenário da implantação da República em Portugal. Várias conclusões se puderam tirar desta efeméride, que alguns viram como campanha cívica e outros analisaram como assunto de morgue. A primeira e mais gratificante conclusão é a de que a República permanece viva nos seus ideias de pluralismo teórico e ideológico, de convívio tolerante, de reivindicação de igualdade perante a lei, de reclamação de maior equidade na distribuição dos rendimentos e de maior civilismo laicista na vivência social quotidiana. Foram estes os valores que os mais humildes puderam saudar e que se demonstraram exuberantemente, em Coimbra, nesse memorável 5 de Outubro de 2010. No espreguiçar de uma tarde cálida, a Praça Velha e a Baixa de Coimbra, com a Praça 8 de Maio apinhada, contemplaram o desfile das mais variadas organizações populares, desde os ranchos folclóricos às bandas de música, sem esquecer as tendas de artesanato e as locandas de comes-e-bebes. Foi uma torrente de Povo, Povo verdadeiro e anónimo, que se juntou à festa e que se sentiu jubilosa. Uma festa deste jaez teria, seguramente, provocado o incómodo (indisfarçável, em certos casos) de certa gente, dita bem-pensante, do burgo conimbricense. E à Pedagogia dos valores houve quem quisesse contrapor a realidade dos factos, insinuando que “a República é isso que aí está”. Este juízo comprova, de uma só vez, duas coisas: a pusilanimidade dos que confundem os ideais com a perversão dos mesmos pela natureza humana, e o inconsciente pendor dos depoentes para o sarro do conservadorismo mais cego e mais rasteiro.
Imaginemos que um convicto defensor do regime republicano pudesse dizer, a esta casta de gente, coisas como estas: a generalidade dos dirigentes históricos do republicanismo em Portugal deu mostras de uma inconcussa probidade; Teófilo Braga utilizava os transportes públicos e rejeitava as demonstrações de faustosa vaidade; Manuel de Arriaga fazia questão de pagar do seu bolso a ocupação do seu domicílio presidencial; Bernardino Machado foi verdadeiramente exemplar, tanto na sua esfera profissional como na sua vida pessoal; José Falcão ensinou a cidadania aos seus concidadãos. Tudo isto, pensaríamos nós, no reduto da nossa ingenuidade, brilha como ouro e como ouro deverá ser conservado. Mas há quem se compraza com os detritos da “História”. É tudo uma questão de escolher, confundindo paradigma com perversão. E logo alegam o regicídio, de que o Partido Republicano esteve isento. E vem a seguir a instabilidade ministerial, sem se referir que ela apareceu, sobretudo, na ressaca de uma Grande Guerra completamente arrasadora. E metem no mesmo bornal o Pimenta de Castro, o Sidónio Pais e o Oliveira Salazar, como se fossem estes os exemplos mais lúcidos e acabados da mensagem republicana, em vez de terem sido, como foram efectivamente, os falsificadores de todo um trabalho, escorreito e idealista, de honrada propaganda. E tratam de remexer no lixo do passado para concluírem, impávidos mas pouco serenos, que a República é “isso que aí está” …
Levada a lógica destas especiosas mentes às suas últimas consequências, poderemos entrar no campo do mais completo delírio surrealista. A Igreja Católica é pedófila – houve Cristo, sim, o Doutrinador, mas há que atentar “nessa coisa que aí está”. A literatura portuguesa é a Rebelo Pinto, pois ela, a escrevente, é “isso que aí está” e que mais vende, em concreto, nas livrarias. A honradez política – que ainda existe – é uma figura de retórica, porque “isso que aí está” é o “Freeport”, as acções do Cavaco e o cheque do Alegre. Estes “intelectuais” não querem que a República seja uma Demopedia em marcha. Querem-na rameira, vulgar e pulha, mas dentro do velho princípio, convenientemente psicanalítico, do “similia similiabus”. Há, em tudo isto, um ajuste de contas a fazer. E nem sequer serão os republicanos sinceros, intransigentemente aferrados aos princípios fundamentais, a pedirem a satisfação da factura. Quem vai proceder ao balanço final será … a História. E ela, segundo cremos, irá dizer isto: “No decurso da efeméride do Centenário da Implantação da República houve gente que se disse republicana, que se confessou democrata, que se apresentou como cultíssima, e que não fez outra coisa senão acutilar, deprimir e vexar – o melhor que soube e pôde – o Republicanismo e a Democracia”.
No dia em que a lógica e a análise possam provar isto, não haverá outra sanção para estes “Catões-de-meia-leca” senão a justa punição de uma monumental gargalhada.
10 comentários:
REJUVENESCIMENTO
Isto que temos hoje, há que o dizer,
insigne Professor, já não é nada:
é como ave ferida e tresmalhada
que a asa arrasta sem voar poder.
Da Primeira República a imagem
deteriorou-se, degradou-se até,
muito pouco restando dessa fé
de vigorosa e altíssima voltagem.
Há que soprar as cinzas da lareira
para de de novo as atear por forma
a vermo-las viradas em fogueira.
Esta hora é porventura de reforma,
ou seja, de retorno aos ideais
transpostos oara os tempos actuais!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Corrijo, no último verso, a gralha "oara" por "para". JCN
O ser humano nasceu
sem ser servo de ninguém,
não devendo ser refém
senão daquilo que é seu!
JCN
Caríssimo Professor,
Dizer mais o quê? Não há mais para dizer depois do que foi por si dito. Mas vou "espremer" o assunto e deixar aqui claro - se assim o meu Amigo o aceitar - que houve historiadores que procurando, dizem eles, uma isenção de análise, fizeram um balanço da República - a 1.ª, entenda-se - como se de um armazém de géneros se tratasse. E, ufanos, "descobrem-lhe" os "pecados" de que o Estado Novo, para se justificar, havia feito alarde. Incapazes de perceber que a História tem de ser interpretada segundo os parâmetros que ditaram os acontecimentos, vêm eles, afinal, julgar a República à luz de uma mentalidade gerada nos 48 anos de ditadura. E tiveram acolhimento nas editoras, junto dos leitores e, até, nas Escolas. Para eles, viver o centenário da República foi a oportunidade de emporcalhar o passado com os seus juízos distorcidos e anacrónicos. É triste!
Aceite um abraço fraternalmente republicano
Para a espinha dorsal endireitar
deste país à beira da ruína
com Homens como Vós há que contar,
republicanos de alma genuína!
JCN
Corrijo, no último verso, a gralha "republicanos" por "republicano", no singular, evidentemente. S... traiçoeiro! JCN
Se um dia for necessário
pegar em armas na mão,
por mim não digo que não,
pese a ser nonagenário!
JCN
A desgraça do país
são as aves de rapina
que desde a sua raiz
o conduzem à ruína!
JCN
Aos abutres que nos cercam
há que sem tréguas dar luta,
há que enfrentá-los à bruta,
não vá ser que eles nos percam!
JCN
Aos abutres há que dar
luta sem tréguas, de frente,
senão vão comer a gente
quando mais nada restar!
JCN
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