11 de abril de 2007

O PONTO DE VISTA DE SIRIUS

“… Mas se a questão for analisada a partir do ponto de vista de Sirius, as conclusões poderão ser já muito diferentes”. Retorno aos bancos do Colégio, escutando com enlevo o meu Professor de Filosofia do 7º ano (o equivalente, em termos grosseiros, ao 12º ano de agora). Tinha ele, ao que aparentava, os seus cinquenta e poucos anos: estatura mediana, olhos vivos brilhando por detrás dos óculos, malares bastante salientes e um jeito de dar aulas como se estivesse a falar só para si. E, navegando entre Heraclito e Fichte, entre Kant e Anaxágoras, entre a Cila do pragmatismo e a Caribdes do racionalismo trascendental, o estimado Mestre expunha, como as contas de um rosário lógico, todo um sistema de pensar: articulava-o premissa a premissa, como se estivesse a encaixar as peças de um Lego conceptual, retirava depois dele as consequências que lhe eram adequadas, comprovava os sofismas de ilações desajustadas e mal feitas e, finalmente, resumia em fórmulas lapidares a essência mais íntima da teorização. Depois, quando todos já nos sentíamos discípulos de Plotino, vogando, maravilhados, na torrente das demostrações ou quando cada um já considerava dominado o ponto de vista do imperativo categórico, ou o da suspensão do juízo, ou o da dúvida cartesiana, o ladino pensador baralhava todos os dados: “Vamos agora raciocinar, mas a partir do ponto de vista de Sirius”. E muita coisa mudava. Sirius era pior do que o gato pequeno da avó, brincando com os novelos de lã; Sirius desfazia convicções, esfumava aquisições consideradas definitivas, conduzia o barco do pensamento para enseadas insuspeitas e surpreendentes. Brilhavam então mais vivamente os olhos vivos do Mestre, divertido a observar a nossa momentânea desorientação. Saudades? Sim, tenho-as. Mas saudades gratas, pois aconteceu ter ficado, para sempre, discípulo desse Homem singular. E, já agora, também de Sirius. Bebi em ambos o licor saboroso e humaníssimo do relativismo.

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