Há cento e cinquenta anos os estudantes que frequentavam a Universidade de Coimbra consideravam-se bafejados pela sorte, pois julgavam habitar um dos mais perfeitos lugares da terra. É certo que esta lenda dourada foi laboriosamente preparada para glória de uma geração: a famosa e sempre recordada “Geração de 70”. Chegaram à cidade do Mondego, em chusma, Antero de Quental, Teófilo Braga, Manuel de Arriaga, João Penha, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, Alberto Sampaio, Vieira de Castro e muitos outros breves talentos, que a memória dos homens guardou menos bem.
De Antero, celebraram-se então os olhos muito azuis, sob uma testa curta e logo interrompida por uma cabeleira revolta, crespa e insolitamente acobreada ; e bem assim o porte donairoso, de efebo cismático; e também a índole provocatória, a baforar filosofemas, quando, escarranchado na janela do quarto, interpelava, qual Oráculo novo, algum académico transeunte, pasmado e incréu, falando-lhe em Manu, e no caudal da eterna Substância, e nos poemas dos Vedas, e em mais mil coisas de um saber iniciático, perfumadamente envolto nas leituras de Hegel, Vico, Schlegel e Michelet. De Teófilo ficou famosa a labuta incansável de formiga erudita; e também o pendor para um aforro judaico, só desculpável devido à magreza das choradas libras que o pai lhe enviava de Ponta Delgada ; e a orgulhosa luta por um lugar ao sol na praça dos literatos, conquistado através do rombo de insultos tonitruantes de que foi alvo o velho António Feliciano de Castilho, patriarca de versos em desuso e alcoviteiro de reputações duvidosas. De Manuel de Arriaga foram referidos os arroubos místico-naturalistas, como se nele pudesse ecoar e fazer-se Verbo a visão purificada de um acabado e incorrupto Homem Novo, sem mácula, de uma excelência cristalina e perene. E João Penha? As velhas tascas da Alta e da Baixa de Coimbra guardaram-lhe os versos e a “verve”, no entrançado de uma indiscernível amálgama.
Conhecem a troça de Coimbra, tal como foi praticada por gerações sucessivas de estudantes e futricas? Eu conto. Imaginemos um fio de conversa que flui entre dois tagarelas com a naturalidade das alusões e dos desabafos ocasionais; conversa aparentemente sisuda, bem comportada, quase reverencial; de súbito, uma das partes, sem aviso prévio, inflecte para uma observação brejeira, para um dito de inesperada comicidade, para uma lateralização verbal de desfrute, mantendo, contudo, a mesma compostura de maneiras e o mesmo tom sério de voz. A troça coimbrã é (era?) isto. E não estamos a perder de vista o boémio João Penha, a espadanar versos por cada botequim, a reverberar espírito em cada magote de comparsas, a comprovar talento nas linhas dos sonetos. Muitos dos sonetos de Penha eram a deslocação da troça para o âmago da Arte, ou seja, era a troça coimbrã posta em versos. A composição explanava-se com a ática sonoridade do paradigma clássico, num crescendo de perfeição e de maravilhamento. Subitamente, no remate do último terceto, eis que se misturam as perfeições da amada com os olores boémios … dos paios de Chaves, dos carrascões beócios ou das alheiras de Mirandela!
Com Penha coabitou um rapaz desengonçado e muito lido em autores franceses, ave nocturna escanzelada e discreta, que a vizinhança da Couraça de Lisboa murmurava ter talento dramático, a avaliar pelo desempenho de “pai nobre”, na representação que o Teatro Académico encenara, sobre a peça alusiva ao poeta Garção, escrevinhada por Teófilo Braga. Era um moço que admirava o ascendente de Penha no bordado da palavra poética, na inesgotável demanda de vinhos de estalo e até no adorno aristocrático de um monóculo inquiridor. Esse rapaz, que mais tarde também se haveria de converter à distinção do monóculo, chamava-se José Maria Eça de Queirós. Havia quem o tivesse visto à roda de um prato de arroz doce no Paço do Conde, ou medindo-se com uma terrina de sável e sardinha frita, na Tasca das Camelas. Era apenas mais um, entre cerca de dois milhares de estudantes, e pouca gente daria pelo seu futuro vinte réis de aposta. Bom gastrónomo teria sido também um tal Abílio Guerra Junqueiro. Descera lá do Minho, para subir, em Coimbra, a “colina sagrada” , solenemente coroada pelo Paço das Escolas . Olhos muito vivos, opiniões políticas radicais, já então denunciadoras de alguma férula anticlerical, apreciador de moçoilas escarquejadas, fossem tricanas ou filhas de doutores de capelo, Junqueiro cobiçou o primado artístico de Penha e emulou-se com a sua hegemonia na sociedade académica do tempo. Um dia, acabaram por se encontrar num botequim. Mediram-se e desafiaram-se, não a soco e empurrão, mas a estrofe, a terceto, a quadra. Coimbra era capoeira demasiado pequena para estes dois galos da palavra primorosa. Findo o recontro, escorrendo ambos, por todos os poros, a baba dos motejos implacáveis, deram-se às boas, concluíram pelo empate e apertaram-se as mãos. Coimbra era assim.
Ao grupo de Antero de Quental pertenceram também José Sampaio e Alberto Sampaio. Os Sampaio convenceram Antero da necessidade de se formar uma sociedade secreta, no seio da estudantada, para derrubar a alegada tirania reitoral de Basílio Pinto, que lhes rateava a intenção de modernizar o traje académico e os proibia de esfumaçar no Pátio e nos Gerais. E foi assim que se organizou a “Sociedade do Raio”. Esta, num memorável 8 de Dezembro de 1862, conseguiu evacuar a Sala dos Capelos de quase todos os convidados de uma festividade académica, deixando o miserando reitor Pinto a falar somente para a galeria dos reis lusitanos, pendentes e pindéricos das paredes, em forma de retratos pintados. Já neste tempo a Coimbra académica se dividia em sensibilidades e parcialidades políticas. Se Antero de Quental, e os Sampaio, e Germano Meireles, e tantos mais, eram vanguardistas, sacrificando exortações e prédicas a um amanhã diferente, sofrendo pela escravização da Polónia pela Rússia e contestando a desenfreada exploração da Irlanda pela Inglaterra, alguns outros tomavam voz pela conservação social. O chefe de fila dos estudantes conservadores era Vieira de Castro, um sibarita de impecável presença, de palavra fácil e de ambição ilimitada. Era presença habitual nos lupanares conimbricenses e um dia fez chorar uma infeliz meretriz, dado o excesso e o abuso dos seus gestos e palavras. Antero de Quental não lhe haveria de perdoar a crueldade, publicando na imprensa a peça poética “Ermelinda”, onde Vieira de Castro sofreu tratos de polé. Talvez por isso, o grupo conservador que lhe era afeiçoado passou a tratar os amigos de Antero sob o epíteto de “os do Raio”, obrigando estes a designarem-nos por “os da Sopa” ou “os Sopas”, por se calcular que todos eles iriam acabar por comer as sopas do orçamento governamental, quando, um dia, fossem chamados aos rendosos lugares de deputados ou de ministros.
Às vezes, movo-me por esta amada Coimbra como um fantasma. Vou então ao encontro de outros fantasmas que por aqui andaram, para por eles reter, através das memórias pretéritas, para deles colher, nem que seja por um brevíssimo instante, o fulgor imperecível da Beleza e da Paz.
2 comentários:
Sr Professor,
Acerca da Sociedade do Raio, eu por acaso possuo um exemplar de um livro de memórias de antigo estudante de Coimbra (embora um pouco em mau estado - é de 1906 e adquiri num alfarrabista)de um estudante que viveu esse acontecimento e relata-o, trata-se da obra do do Brasileiro Dr. Antão de Vasconcelos, conhyecido no meio académico pelo "Mata Carochas", chama-se "Memórias do Mata Carochas". Ele fala desses acontecimentos e viveu-os em pessoa, mas talvez exagere um pouco no que relata nas suas memórias. Ele andou em Coimbra de 1858 a 1864 ou 65. Regressou ao Brasil já formado em Direito e até chegou a deputado. Era do Rio de Janeiro.
Meu Amigo,
Depois deste “passeio” pela Coimbra estudantil de há 150 anos quase perco o fôlego por causa do “mergulho” no tempo! Só pela mão de um estudioso da velha Atenas portuguesa eu me sinto de novo em casa. E gosto do que vejo ou revejo. Pois que além de serem jovens, os Anteros, os Teófilos, os Eças, os Penhas, os Junqueiros, todos tinham em comum duas coisas extraordinárias: o imenso prazer de saber – mesmo que brincando, como é próprio da juventude – e a imensa capacidade de sonhar. E esta última estalou com força por duas vezes: em 1865, na Questão Coimbrã (não é extraordinário como um punhado de jovens empolga uma significativa parte da intelectualidade do país durante quase um ano, debatendo-se contra uma forma estética gasta pelo abusado uso?) e, cinco anos mais tarde, já em Lisboa, nas célebres Conferências do Casino.
Os estudantes de Coimbra eram e foram assim (continuarão a ser?): capazes do folguedo, mas ousados nos estudos que iam para além das velhas “sebentas” dos mestres, as quais tinham de repetir à exaustão. Curiosamente, eles primavam não tanto pelo cumprimento zeloso e fiel dos programas estabelecidos pelos lentes, mas pelo que aprendiam “por fora”; as aulas era um calvário que se subia pela necessidade do canudo de bacharel, mas a poesia, as novas ideias políticas que fervilhavam, vindas de França, os estilos literários que se comentavam e esmiuçavam, as teses dos filósofos que rompiam com tradições, tudo isso era estimulado por uns quantos que levavam na sua esteira admiradores e companheiros. Coimbra era um tempo de emulação ao saber – não só dos mestres (quase nunca dos mestres) – mas dos múltiplos desafios que desatinadamente surgiam nas conversas de uma estúrdia nem sempre pueril. Um saber que não tinha barreiras nem limites, nem contenções, nem convenções. Um saber que se estudava para não ser apanhado na rede dos que vinham a Coimbra só para agradar ao pai, ao padrinho ou ao tio que pagava os estudos e serem incensados no altar materno ou no oratório das velhas criadas; esses passavam por Coimbra e não deixavam memória… e foram muitos!
Não, não estudei em Coimbra! Que estou eu para aqui a dizer?! Que experiência tenho eu disto tudo?
Não me pergunte, meu Amigo, mas “sinto” que foi assim.
Não propagandeio crenças em princípios teológicos justificativos de experiências passadas noutros tempos e lugares. Não quero dizer que os não estude! Todavia, sou excessivamente preso à realidade para me deixar amarrar em reencarnações. Mas Coimbra é um caso raro, em mim, que me transcende…
Um grande abraço, com a grata amizade pelo “passeio” que me proporcionou.
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