27 de maio de 2008

UMA IRONIA DE SHAKESPEARE

O episódio do suicídio frustrado do Duque de Gloucester no King Lear , de Shakespeare, é muito impressionante. E é-o sobretudo porque nos obriga a ir além de uma simples leitura do que “realmente é contado”. Mas comecemos por isso, pela simples historieta de um homem velho e cego, desesperado por não ter atingido nenhum dos objectivos a que se propunha, que pede a Tom, um pobre louco, que o guie para junto de um penhasco bem alto, com um precipício bem fundo, para que, assim, possa atirar-se dessas alturas, com a certeza antecipada de que os seus dias iriam terminar, e, com eles, também as provações. Mas Tom conduz Gloucester a um insignificante montículo, impróprio para a concretização do desejo de finitude que anima este tal homem velho e cego. Quase podemos imaginar o grotesco da cena: um ser humano desesperado imagina que se encontra no cimo de uma vertigem, quando afinal só se encontra no sopé de uma idiotice sem sentido. Contadas as coisas assim, com toda esta trivialidade, a historieta quase nos molesta, por canhestra e irrisória. A questão é que o significado mais íntimo das coisas está sempre além delas mesmas. É no simbolismo da Arte que encontramos a mais certeira interpretação da Vida. O desespero de Gloucester deve ser visto como o desespero do fim da existência, altura em que todos os balanços se tornam não apenas possíveis, mas irrevogavelmente verdadeiros. A morte em vida talvez seja essa alegoria de um Desespero (Gloucester) conduzido pela Loucura (Tom). Caminhamos para o fim como desesperados guiados por insanos, nossos iguais em condição, mas de variável lucidez. E quando julgamos poder concretizar uma vontade, a desesperada vontade de partir, verificamos que nem sequer sobre essa temos total soberania.

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