Existe um fundo de permanência na mudança que é perturbante e paradoxal. O nosso calendário exibe festividades litúrgicas, domésticas, ociosas, profissionais, etc. E ostenta momentos memoráveis, que os adolescentes resguardam com folhas secas de hera ou em inscrições buriladas na casca das árvores ou esparramadas a negro em paredes de bairro. Os adolescentes? Que digo eu? Adolescentes fomos e somos nós todos, embora uns se revelem mais envergonhados ou menos francos do que outros.
Quando não guardamos lembranças preciosas no simbolismo das folhas, por acharmos que tal é já caduco, romântico em demasia ou simplesmente fora de moda, remetemo-las, bem dobradas, para os escaninhos da alma (seja lá o que isso for). E, como dizia Fenando Pessoa, em vera versão (heterónimo de si) ou em heterónimo (verdade do Outro-Eu), vamos depois recordando coisa por coisa, como quem dedilha uma harpa de sonoridades previamente combinadas, em registo comemorativo … Pois não era ele que afirmava, muito profético, que depois da morte todos iríamos ser recordados pelo menos uma vez por ano – era optimista, este Pessoa ! – “comemorativamente”?
Mas quando tudo se repete vezes de mais, isto é, quando nos empanzinamos de memória, então ficamos tristes connosco, ou com a vida que foi sugada pela voracidade do Tempo, por esse Cronos que a própria mitologia grega considerou mais alto do que Zeus. Ou então ficamos soturnos, pensativos, encarquilhados a um canto, por ser tudo tão breve, tão datado, tão pretérito. E acabamos por dizer, ao apagar a luz do embaraço: - “Até amanhã !”.
4 comentários:
CINZAS DO TEMPO
Breves os dias passam como folhas
que os ventos outonais fazem voar
ou mais prosaicamente como bolhas
que � tona da �gua v�m a rebentar.
O tempo tudo leva � sua frente,
coisa nenhuma inc�lume deixando,
como � sabido, como � voz corrente
e se ouve repetir de quando em quando.
Do passado que fica para tr�s
restando v�o mem�rias e lembran�as
na alma guardadas a fazer de arcaz.
� l� que tenho um len�o que me deste
no pr�prio dia em que me conheceste
para um anel guardar das tuas tran�as!
Jo�o de Castro Nunes
Sou, por natureza, um saudosista. Julgo que, poucas horas após ter nascido, já deveria sentir saudades do útero materno!
Guardo lembranças de tudo e lastimo que a memória me vá atraiçoando. Tenho um pé no passado, deixando que o outro esteja no presente fugidiamente. O meu «Até amanhã» é sentido com a esperança de poder recordar o «hoje»…
Projectos? Futuro? Claro que os tenho, claro que o desejo, mas são faróis; só isso. O verdadeiro gozo vem-me da memória do que já passou. Talvez eu seja soturno, triste, julgando-me bem disposto…
Cada vez mais recordo e me recordo e, neste caminhar sobre folhas caídas das árvores que bordejaram o meu caminho, sinto que cumpro uma missão: a de manter vivos os que comigo viveram.
Um abraço, meu Amigo, e obrigado por me ter possibilitado esta reflexão.
CRONOS
O tempo mais não é que uma palavra
que nada significa, a bem dizer;
é simples termo de latina lavra
difícil de explicar e de entender.
De remota raiz indo-europeia,
segundo linguística versão,
tem algo a ver com a primária ideia
de ser do vero Tempo uma porção.
Dando-lhe humana forma, o povo grego
fez dele um deus, o deus que rege o mundo
que traz em perenal desassossego.
Tudo devora e sempre está co fome;
insaciável, sôfrego, segundo
o mito reza, os próprios filhos come!
João de Castro Nunes
"FORA DE MODA"
Eram tempos românticos aqueles
da nossa juventude, quando nós,
nunca deixados um momento a sós,
mantínhamos distantes nossas peles.
Gravávamos os nomes enlaçados
com corações no tronco das mimosas,
mandando-te eu,pela criada,rosas em ramos para o caso encomendados.
Conservo ainda dentro da carteira
uma madeixa tua de cabelo
para diariamente poder vê-lo.
Que romântica foi a nossa vida:
de ti tenho num lenço recolhida
uma gota de sangue verdadeira!
João de Castro Nunes
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