7 de abril de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XIV

Augusto Comte, fundador da filosofia positivista

XIV - O POSITIVISMO, FILOSOFIA DO REPUBLICANISMO

A geração republicana que desenvolveu entre nós a sua propaganda, entre 1870 e 1890, reclamou-se adepta da corrente filosófica do positivismo. Esta filosofia, concebida e fundamentada especialmente por dois estudiosos franceses, Augusto Comte e Emílio Littré, difundiu-se com celeridade na Europa, a partir dos meados do século XIX. Correspondia ela ao acelerado desenvolvimento das “ciências de rigor”, desde a Física à Biologia, desde a Química à Medicina. O positivismo valorizava um saber construído sobre os dados dos sentidos, desconfiava das grandes hipóteses teóricas não verificadas e pretendia introduzir na gestão e administração da sociedade um conjunto de processos de investigação e análise tão exactos como os que haviam permitido, até então, o espantoso progresso dos conhecimentos científicos e das correspondentes aplicações técnicas.

Poderia a evolução histórica revelar as suas leis e princípios determinativos? A sucessão dos regimes político-sociais obedeceria a implacáveis e ignorados processos de sucessão? Estariam as colectividades sujeitas a ritmos de desenvolvimento que pudessem ser previsíveis e facilmente diagnosticáveis? Existiriam instituições, poderes, tipos de comando e modalidades de hierarquia cuja vigência pudesse ser exclusivamente reportada a fases históricas características, entrando em agonia a partir do momento em que o tempo desvanecesse a sua temporal justificação? Entre todas as particularizações do positivismo,  uma houve que fascinou verdadeiramente os nossos militantes republicanos, sobretudo os que se manifestaram antes do Ultimato inglês. Homens como Júlio de Matos, Teófilo Braga, Alexandre da Conceição, Alves da Veiga, Consiglieri Pedroso, Sebastião de Magalhães Lima ou Ramalho Ortigão (o Ramalho dos inícios dos anos 80 e não aquele que haveria de abjurar, mais tarde, do republicanismo programático), acreditaram que Augusto Comte descobrira a verdadeira e única lei do desenvolvimento social. A “lei dos três estados” não se limitava a aparecer como uma entre várias abordagens da historicidade, como uma entre diversas filosofias da história. Esta plêiade aceitou que o melhor do conhecimento sociológico repousava nessa explicação normativa que ilustrava a passagem das teocracias aos regimes demo-liberais e destes aos futuros e definitivos regimes “científicos”.

Galileu descobrira as leis do movimento dos corpos físicos em queda livre? Decerto. Mas também Comte desvelara as leis da mutação social, agindo invariavelmente em todos os quadros históricos, caracterizadores da “marcha das civilizações”. Comte era o Galileu dos movimentos colectivos, aplicando o seu pragmatismo demonstrativo ao último continente condenado até então a uma espécie de virgindade cognitiva: o continente dos fenómenos sociais. Assim, haveria uma relação de íntima correspondência entre os estados mentais do Grande Ser colectivo, da Sociedade naturalizada, e os estados institucionais que o exprimiam inevitável e necessariamente. No estado mental teológico, cuja capacidade interpretativa dos fenómenos remetia, em última análise, para a intromissão do Divino, as instituições não poderiam ser senão as da Teocracia, com a sua sacralidade do Poder e a sua hierarquia rígida. Mas as filosofias do século XVIII haviam desmantelado o dogmatismo religioso, impelindo as colectividades para as diversas formas de explicação individual, de natureza metafísica. Ora, este individualismo só poderia exprimir-se politicamente através de “regimes de opinião”, liberais-democráticos, agindo através do sufragismo e da vontade maioritária. Porém, este resultado histórico não era o definitivo. Ele só chegaria com a universalização da mentalidade científica e com a organização do que Comte designou por Estado Normal. Esta sociedade seria forçosamente agnóstica, por se ter libertado de todas as formas de teologia; e seria também obrigatoriamente republicana, por se entender que a monarquia era a abusiva irrupção do teologismo no plano de um tempo que já havia superado o poder régio, esse poder discricionário, arbitrário, de um sobre todos. Nenhuma demonstração poderia fazer-se a favor da monarquia, ainda que esta pudesse ser constitucional, uma vez que ela era a expressão completa do anacronismo.

Uma sociedade “sem Deus nem Rei” – eis a fórmula do comtismo político, prontamente adoptada pela geração republicana portuguesa anterior ao Ultimato de 1890.

4 comentários:

Sérgio Loureiro disse...

Bom dia, meu bom amigo.

O interesse que me despertou sobre o seu blogue "obrigou-me" a visitá-lo logo pela manhã. Pois aqui estou, com a sua permissão, e pela aragem que aqui se respira, o conteúdo promete ser interessantíssimo.

Esta nossa época histórica é fabulosa e cheia de mistérios. Mas, ao mesmo tempo, rica de acontecimentos políticos. Fascina-me, confesso, a História Contemporânea.

Sei que permitirá a minha contínua entrada nesta sua casa bem arrumada. Virei com gosto, sem nada desarrumar. À saída, manterei a porta encostada, porque esta deve ser entrada obrigatória.

Um abraço,

Sérgio Loureiro.

Luís Alves de Fraga disse...

Caro Amigo,
Uma vez mais, depois de ler o seu artigo, fico sem palavras para o comentar, tal a singeleza, correcção e profundidade da abordagem que faz ao tema. Dizer tanto e tão bem em tão poucas palavras é trabalho quase impossível. Para aditar algo que desconchavadamente se possa articular com o seu texto só me ocorre recordar a profunda influência que o clero – em especial o baixo – da Igreja Católica exercia nas mentes quase incultas dos milhares de analfabetos que habitavam as aldeias e cidades portuguesas. Influência que começou a ser combatida exactamente pela geração que leu Comte e Littré e acreditava no positivismo. Foi, talvez, por essa via que se chegou à Lei da Separação das Igrejas do Estado, embora se tenham perdido, com o rodar das décadas, os liames que a prendem aos criadores da Sociologia. A Maçonaria foi o adversário sobre quem recaíram as maiores culpas. Quer dizer, identificou-se a “mão”, mas perdeu-se a “cabeça”. E, talvez, não seja descabido recordar o anátema que sobre a Sociologia foi lançado pelo Estado Novo, o qual só muito tardiamente e de forma enviesada autorizou a leccionação de tal disciplina em cursos universitários quase desconhecidos.
Há-de desculpar-me mais esta ousadia que de um simples comentário passou a um atacoado sem jeito nem razão.
Aceite o meu abraço (“saudável e fraternal”) com sincera admiração pelo seu labor republicanamente didáctico

João de Castro Nunes disse...

Elucidativa e lúcida,
é a melhor síntese até hoje pedagogicamente elaborada sobre a filosofia positivista e a sua transposição, pelos melhores espíritos da época, para a análise e compreensão das cíclicas mutações político-sociais da colectividade humana. Agradeço a lição!

Anónimo disse...

VERSATILIDADE


Não sou positivista: não aceito
que os povos obedeçam cegamente
a um código de regras imanente,
ao qual o ser humano está sujeito.

Na vida colectiva das nações
é tudo imprevisível, dependendo
de circunstâncias várias, que vão tendo
as mais diversas manifestações.

Nega a realidade a teoria,
surgindo de relance a monarquia
na altura em que a república se espera.

E, vice-versa, observa-se o contrário,
assim como nem sempre ao calendário
se ajusta com rigor a primavera!

João de Castro Nunes