6 de outubro de 2009

COIMBRA E A REPÚBLICA

A capa da revista Alma Nacional, dirigida por António José de Almeida, foi desenhada por António Augusto Gonçalves, nome memorável do republicanismo conimbricense. O texto que se segue foi propositadamente redigido para ser dito, como realmente foi, no Sarau Comemorativo dos 99 anos da implantação da República, o qual decorreu ontem, 5 de Outubro, no Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra.


Coimbra já foi Cidade. Sim, Cidade com maiúscula. No tempo das invasões francesas constituíram-se batalhões académicos para derrotar os invasores. E Coimbra deu à sorte das armas o que havia de melhor na sua Academia. Coimbra, aí, foi Cidade, Cidade grande, não acham? Julgavam-na a dormir, encostada à colina sagrada, toda espreguiçada nas vertentes coroadas pela torre do antigo Paço Real, aquele Paço que depois foi Universidade? Julgavam-na distraída, toda a cismar, olhando o Mondego como uma sonâmbula? Pois enganaram-se! Coimbra deu o melhor da sua juventude para combater os franceses. A Coimbra foi então Cidade com maiúscula, sim! Mais tarde, quando foi preciso travar o absolutismo de D. Miguel e proteger o liberalismo de D. Pedro, Coimbra voltou a vestir farda e a dizer que queria ser livre, para poder continuar a ser bela. Depois, esse mesmo liberalismo envelheceu. Tornou-se assenhorado, todo salamaleques, a beberricar chá e a comer bolinhos em salões da aristocracia, a ouvir versos sem sal e a fazer vénias palacianas. Era no tempo em que Garrett dizia: “Foge cão, que te fazem barão. Mas para onde, se me fazem visconde?”. Que gente aquela, que mundo aquele! Eu cá, meus Senhores e minhas Senhoras, que tenho costela futrica, eu que ainda fui de uma cidade onde existia uma ponte de pedra tão estreitinha que lhe foi preciso fazer um Ó numa ponta para se cruzarem duas carroças, eu cá, digo-vos em segredo, não gostava daquilo. E comecei por apreciar o Senhor D. António Alves Martins, o bispo de Viseu, que garantia que a religião se queria como o sal na comida, nem muita, nem pouca. Tempos depois, começou a falar-se em República em Coimbra. Era quase proibido, vejam bem. Como se fosse maleita grave gostarmos das coisas públicas – escolas, hospitais, creches, meios de transporte, monumentos, ruas, tudo isto bem nosso, porque tinha sido pago com o nosso dinheirinho. Ali entre 1878 e 1880 já em noites silenciosas se ouvia gritar, fora de horas, para que os polícias não viessem chatear: “Viva a República!”. Essas vozes tanto podiam partir do Penedo da Saudade como do ermo do Calhabé ou do Terreiro da Erva. “Viva a República!”. Umas vezes havia resposta igual, outras um silêncio. Mas era como se estivessem a escrever-se mensagens de fogo no ar. E Coimbra, fosse ela estudante ou fosse futrica, sabia que pela República respondiam pessoas de bem. Lembram-se de António Augusto Gonçalves, de Manuel Augusto Rodrigues da Silva, de Abílio Roque de Sá Barreto? Gente honrada, gente de qualidade, gente republicana. Quem sabe se numa dessas noites de silêncio e de prata no céu, não teria sido um deles a responder à voz de “Viva a República” com outro “Viva a República”? E lembram-se do professor universitário Manuel Emídio Garcia? Esse quase que meteu o ensino republicano dentro das aulas de Direito da Universidade. Um escândalo? Talvez! Mas um escândalo feito em boa hora. E recordam-se do grande José Falcão? Esse viu o seu lugar de lente por um fio, quando escreveu um folheto a favor dos revolucionários da Comuna de Paris. E também o quiseram expulsar quando desconfiaram que era dele a Cartilha do Povo, onde se ensinava que a vida dos homens, fossem pobres ou ricos, era para ser vivida de pé, sem ter que se rastejar perante esta ou aquela autoridade. É que a Pátria somos nós todos, não é assim? Pode lá ser de outra maneira… E quando os republicanos do Norte fizeram no Porto a revolta de 31 de Janeiro de 1891? Apanharam Coimbra a dormir? Mais uma vez, não. Dois jovens estudantes, que já tinham protestado por ocasião do Ultimato, prepararam as coisas com José Falcão para que este tomasse conta do poder civil de Coimbra, se o Porto fizesse a República. Querem saber como se chamavam? O estudantinho de Medicina dava pelo nome de António José de Almeida; o de Direito era o Afonso Costa. Havia um grupo de gente decidida a atacar o Quartel da rua da Sofia, se as coisas corressem bem no Porto. Correram mal? Pois correram. Mas julgam que Coimbra ficou a dormir? Era o que faltava! Coimbra fez a greve académica de 1907 contra o ditador João Franco. Nem valerá a pena contar tudo por trocados. E as resistências contra o Estado Novo? E a campanha do General Humberto Delgado? E as greves de 1962 e de 1969? Coimbra já foi e continua hoje a ser Cidade. Cidade com letra maiúscula. Cidade com gente limpa, honrada e republicana a fervilhar nas suas praças e ruas, a admirar os seus monumentos, a andar nos seus transportes, a estudar nas suas escolas, a defender as suas coisas públicas – que o mesmo é dizer : a preservar a sua República. E quando hoje, de Celas ou do Choupal, de Santo António dos Olivais ou dos Arcos do Jardim, por uma noite de silêncio prateado, alguém gritar “Viva a República”, tenham a certeza, Senhoras e Senhores, que uma Cidade, quase em peso, responderá: “Viva! Para sempre, Viva a República!”

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