2 de outubro de 2009

VARIAÇÕES SOBRE O ROSTO

- “Não vou com a tua cara”, disse-lhe ela. Esta frase continha, sem que ela o soubesse, toda uma tradição cultural, multissecular e perturbadora. É certo que nos é permitido invocar a advertência dirigida por Jesus Cristo a S. João, intimando-o a não julgar segundo o rosto. A verdade, porém, é que muito antes do nascimento do rabi da Galileia se organizavam tábuas empíricas de interpretação do rosto. Era como se este fosse o espelho mágico e enigmático de profecias temperamentais e de pendores de carácter. A cara, que os primitivos sabiam nunca poder ver directamente, que só se divisava pelo reflexo em águas paradas de regatos ou em lâminas líquidas de poças de chuva, esse rosto era, verdadeiramente, a revelação da pessoa. Por isso, ele encontrava-se de tal forma identificado com o mais fundo e radical de cada um, que todos o tratavam com reverência sacral. Ainda hoje, em certas comunidades primitivas, é forte injúria tentar retratar a face de alguém. É como se o fotógrafo estivesse a cometer uma profanação, um roubo à falsa fé, uma espoliação imperdoável. O período da Renascença foi especialmente permeável a certas “gnoses” interpretativas baseadas em indícios, em sinais, em augúrios. Apesar do seu pendor experimental e científico, o próprio Leonardo da Vinci foi ao ponto de proferir afirmações como estas: “Os que têm linhas muito acentuadas entre as sobrancelhas são irascíveis”; “Os que têm muito marcadas as linhas transversais da fronte são homens que não param de se lamentar, em público ou em privado”. Esta tradição, que remonta a textos aristotélicos autênticos e a outros que lhes são falsamente atribuídos, irá combinar os signos astrológicos, com a quiromancia e com análises exaustivas feitas à forma do nariz, à implantação das orelhas, ao volume das bochechas, à carnação dos lábios, à vastidão ou exiguidade da testa, ao volume e textura dos cabelos, etc. Na transição do século XVI para o século XVII, iremos encontrar a obra perturbante de Giambattista Porta, que no seu livro Da Humana Fisiognomonia, tentará abordagens de comparação sistemática entre as semelhanças dos traços humanos e dos focinhos animais, procurando descortinar nuns e noutros afinidades de carácter. Isto chegou até nós, em juízos zoológicos insistentemente invocados: “Ele é forte como um touro, manhoso como uma raposa, valente como um leão”. No século XVIII aparecerá a obra do monge suíço Johann Kaspar Lavater, com um estudo exaustivo da diversidade de perfis humanos, indagação que vinha animada de propósitos de diagnóstico científico. Ir do traço fisionómico à verdade mais funda do carácter, do sinal à intimidade do eu, nisto consistiu a questão que tanto entusiasmou certos círculos culturais europeus. Depois viria Gall e a sua frenologia ou craneoscopia, procurando retirar ilações do estudo das bossas cranianas. E, em pleno século XIX, os estudos de Lombroso levantavam a dúvida sobre se haveria um rosto típico dos criminosos natos.

“Não vou com a tua cara”. Uma simples frase pode conter um mundo de implicações; sem que, na maior parte dos casos, o autor do juízo se dê conta do mundo simbólico que lhe subjaz.

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