A profundíssima crise que se abateu sobre Portugal em 1891 não foi apenas económica e financeira, mas também moral e cívica. Era o retrato fiel de quarenta anos de desgoverno administrativo e de rebaixamento político. Fontes Pereira de Melo quisera, a partir dos inícios do decénio de 50, reduzir o fosso que separava o país da realidade europeia transpirenaica. Não foi sustido neste seu desejo pela crónica penúria do Erário Público. Portugal seria regado a libras, e se estas faltassem haveriam de ser encontrados outros credores externos, talvez na Alemanha, talvez em França , talvez no Reino da Utopia… Assim se fez. Tornando-se necessário satisfazer os encargos, cada vez mais exigentes, dessa dívida externa, a governação recorreu a cargas fiscais progressivamente mais severas. Mas, para desdita dos mais fracos, correspondia à natureza do imposto fontista, liberal por essência, onerar fundamentalmente os bens de consumo e não o montante dos rendimentos. Tal método representava, sem o menor laivo de contenção, o sacrifício das economias domésticas mais débeis.
A partir de 1876, com a celebração do Pacto da Granja e a emergência do Partido Progressista, nova federação monárquica de grupúsculos minoritários, ficaram reunidas as condições para o exercício de um remodelado rotativismo. E os alcatruzes da nora do Poder passaram a chocalhar com o peso dos aspirantes às benesses orçamentais, agora repartidas entre os regeneradores e os progressistas, numa bocejante e revezada partilha. Este rotativismo acentuou a pressão sobre o sistema político de camarilhas e clientelas, condicionando igualmente a liberdade de movimentos do jogo económico, agora espartilhado pela avidez particularista das mais desarvoradas ambições. O Estado foi perdendo prestígio e credibilidade. Mas a persuasão das obras públicas e dos “melhoramentos materiais” calou durante cerca de vinte anos a voz dos sofredores, ou seja, das camadas sociais penalizadas. Identificavam-se estas com o anonimato dos trabalhadores por conta de outrém, dos pequenos e médios comerciantes e industriais e, sobretudo, dos enxames miseráveis formados por camponeses analfabetos. No plano da economia, tudo foi lento, mas inexorável: cresceu a dívida externa e interna; medraram os juros devidos e não pagos a credores cada vez mais desesperados; vulgarizou-se o expediente de firmar novos empréstimos para pagar os juros de iguais operações anteriores; depreciou-se a moeda a um tal ponto que a de prata desapareceu completamente do mercado; declarou-se a inconvertibilidade da cédula bancária; concederam-se monopólios a empresas privadas, como a dos Tabacos, para que estas pudessem ser as fiadoras de obrigações públicas; as receitas cobradas cobriram uma percentagem cada vez menor das despesas públicas; os banqueiros franceses e alemães fizeram saber que tinham os governantes portugueses na conta de maus pagadores e que, portanto, só estariam na disposição de emprestar novamente se lhes fossem anteriormente garantidas as consignações de receitas seguras; os caudais da emigração engrossaram mais do que nunca.
Foi um tumor que cresceu desmedidamente, até ao clímax do seu rebentamento, em 1891. Disseram alguns que o auge de tamanho declínio não teria sido atingido se Portugal tivesse sido poupado à falência, em Novembro de 1890, dos Baring Brothers, casa bancária de Londres que funcionava como a instituição creditícia por excelência do governo português. Também se alegou que a implantação da República no Brasil, em 1899, determinara a quebra do câmbio da moeda brasileira e a consequente redução drástica do valor dos “depósitos emigrantes”. É certo que eles funcionavam como uma almofada de amortecimento das mais diversas situações deficitárias. Porém, mesmo que tais desditas não tivessem ocorrido, pouco haveria a fazer por um país que chegara ao ponto de ter de afectar a encargos da dívida cerca de 45% das receitas públicas.
E os homens, esse capital preciosíssimo de resgate e salvação? Que homens tínhamos então para fazer face ao total descalabro? Alguns desses – e dos mais responsáveis – foram exautorados com justiça por Oliveira Martins, quando ocupou a pasta da Fazenda no gabinete de José Dias Ferreira, em Janeiro de 1892. Usando da palavra em plena Câmara dos Deputados, ele comprovou, de modo taxativo e documentalmente irrefutável, que em exercícios anteriores o Erário Público fora intencionalmente desfalcado por Mariano de Carvalho. Ao que este lhe replicou, sem negar a gravíssima imputação, que já salvara por mais do que uma vez Portugal da bancarrota… Oliveira Martins pagaria caro a sua ousadia: seria alijado desse gabinete, em Maio do mesmo ano!
1891 foi o ano em que o Banco de Portugal viu escoadas as suas reservas; em que multidões desorientadas procuraram reaver, em muitos casos sem êxito, as poupanças que haviam confiado a instituições bancárias; em que o Banco Lusitano e o Banco do Povo suspenderam pagamentos; em que companhias de referência, até então com imaculados exercícios de gestão – como a Companhia dos Caminhos de Ferro e a Mala Real Portuguesa – vieram a público confessar a verdade da sua calamitosa situação económica. 1891 foi o ano da abortada revolta do Porto. Como não acreditar que a República tivesse surgido, na arca do peito, no íntimo do coração de muitos portugueses, como o alfa e o ómega do futuro destino da Pátria?
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