5 de dezembro de 2010

EPITÁFIO EM MEMÓRIA DE MANSILHA



Transcrevo aqui um dos últimos testemunhos que recolhi de Afonso Ribeiro de Mansilha, ancião de boas letras, que esteve para ser padre, mas acabou por ver recusados os confortos proporcionados aos agonizantes pela Santa Madre Igreja, quando os olhos se lhe fecharam. O Senhor Afonso gozava de má reputação nas redondezas, sendo-lhe imputados vários crimes de sedução e de corrupção da juventude, que nunca chegaram à barra dos tribunais. Aqui fica o traslado fiel que dele pude colher, seis meses e dezoito dias antes de ter aparecido defunto no seu quarto, cercado por incontáveis garrafas de vinho (maduro tinto, do bom, senão mesmo do muito bom, talvez até do excepcional, segundo enólogos capacitados).

Fala Afonso Ribeiro de Mansilha, varão e beberrão:
“Aquilo que mais me agradava era morrer irreversivelmente ébrio, quando chegasse a minha vez. Bem sei que esta confissão deslustra o estatuto que alguns forcejam por me outorgar. Mas – tem paciência! – (dizia ele, fitando-me de través) – tenham todos muita paciência, uma bebedeira magnífica, rente à hora da morte, é a melhor coisa que pode acontecer a um ser humano. Mário de Sá Carneiro, esse magnífico esquizóide, muito preocupado com o facto de ser gordo e duvidosamente sexuado, pedia que batessem em latas, quando se finasse, que rompessem aos saltos e aos pinotes, que fizessem estalar no ar chicotes, que chamassem acrobatas e que o seu caixão fosse sobre um burro ajaezado à andaluza. Tudo volições respeitáveis e sumamente exequíveis, bem sei. Mas eu não peço tanto. Por mim, quererei morrer atulhadinho de vinho maduro tinto, escorrendo-me como um rio pela goela abaixo. Na escolha das castas e dos sumos de uva, eu poderia mandatar alguns amigos do peito, que fizessem por mim o que eu me neguei a fazer por eles, quando, em reiterados carnavais gastronómicos, me furtei ao convite casuístico e honesto : “Mas então não bebemos mais um copo?”. A morte deveria ser o que não é: o gesto final da autenticidade, homérico, no qual os iminentes finados pudessem dizer ao mundo verdades definitivas. Tais como: a) os filhos da puta (por extenso) que tiveram de aturar; b) os amores que ficaram por consumar ; c) as emoções que houveram de suster; d) os vícios ocultos que ficaram no armário; e) as grandezas imensas que lhes sacudiram as almas, sem que ninguém tivesse dado conta de tal ; f, g, h … z) os gritos de confissão e de afirmação que só podem arvorar-se e desarvorar-se com uns litros de excepcional vinho tinto (maduro) no bandulho, na hora em que nos preparamos para entregar às divindades do Olimpo (e de preferência a Diónisos) aqueles restos de “anima” ou de “psyché” que não puderam revelar-se aos “quinzinhos” desta Terra. Está visto! Gostava muito de me finar com um “pifo” imenso. E, já agora, a ler aos repelões, ditados pela convulsividade etílica, os sensatos desejos finais de Mário de Sá Carneiro”.

Afonso Ribeiro de Mansilha, mais conhecido pelo “Vinha-de-Alhos”, deixou inúmeros testemunhos iconoclastas, que eu recolhi contritamente, não porque me revisse na doutrina, mas porque, dado a homenagem que o Vício acaba sempre por prestar à Virtude, me posso assim louvar nas pias advertências das criaturas de bons costumes, que tanto e tão justamente execraram a sua memória e o seu génio.

4 comentários:

Luís Alves de Fraga disse...

Excelente, meu caro Amigo! Excelente!
Um bom "pifo", não sei se na hora da passagem, é sempre motivo para dar largas ao que nos vai na alma e a conveniência do momento nem sempre permite.
Excelente!

João de Castro Nunes disse...

OLÍMPICAS RIVALIDADES

Deu Prometeu ao ser humano o fogo
que inteligentemente aproveitado
lhe terá dado um grande desafogo
no seu penoso e primitivo estado.

O dia prolongar-lhe permitiu
e luz fazer no fundo das cavernas:
utilizando pedras conseguiu
antecipar-se às lâmpadas modernas.

Por isso como deus o adorou,
o que forte ciúme despertou
no báquico Diónisos, o qual,

querendo superar o seu rival,
ao ser humano o vinho revelou,
graças ao qual de mágoas o livrou!

JOÃO DE CASTRO NUNES

João de Castro Nunes disse...

Nem que fosse um cenotáfio,
nada ficava melhor
que este excelente epitáfio
para um grande bebedor!

JCN

João de Castro Nunes disse...

ESFÍNGICO DILEMA

Um deus o fogo ao homem revelou,
um outro o vinho, que a alma lhe aqueceu:
enquanto aquele a mente lhe aguçou,
este em contrapartida lha toldou
por certo na melhor das intenções
quer na alegria quer nas turbações.

A quem deve ele gratidão maior:
a Diónisos, comparsa na bebida,
ou Prometeu, parceiro na corrida
para da guerra se tornar senhor?!

JCN