10 de dezembro de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO LVIII

LVIII - D. Manuel II , o Rei Breve

Um rei imberbe, vacilante e tutelado por sua mãe, a rainha-viúva; quatro gabinetes governamentais – os de Campos Henriques (vindo do ano anterior), Sebastião Teles, Venceslau de Lima e Veiga Beirão – que se sucedem de modo pouco pacífico, gerando nos próprios arraiais da monarquia uma tempestade de recriminações, ressentimentos e amarguras; uma oposição republicana que se prepara para todas as eventualidades, pronta a aproveitar as oportunidades que vierem a suscitar-se, de modo espontâneo ou preparado, para desencadear contestações e paradas públicas de força; a Autarquia lisboeta com a presidência entregue, desde Novembro do ano anterior, a Anselmo Braamcamp Freire, um antigo servidor do Paço, que a desilusão atirara para os braços do republicanismo; uma sociedade corroída por suspeições de honorabilidade em relação à gestão das finanças públicas e ao escrúpulo do seu pessoal político; um sector religioso, talvez minoritário mas muito activo, defensor de um catolicismo afectado por princípios radicalmente conservadores e por ânsias de intervencionismo bem distantes do simples “serviço das almas” ; um quotidiano só aparentemente tranquilo, mas na realidade desconfiado da “acalmação” que lhe fora prometida após o rei D. Carlos e o príncipe-herdeiro terem sido assassinados, no pretérito primeiro de Fevereiro do ano de 1908 – eis uma sucinta súmula das notas caracterizadoras do ano de 1909.

Passemos ao detalhe.

Debruçando-se sobre a figura de D. Manuel II nas suas Cartas Políticas, João Chagas declarou, com manifesta crueza, que o monarca o tinha sido quando já não era preciso. Com efeito, o regicídio escrevera o epitáfio da monarquia em Portugal. O que sobejava era uma Corte em estado de descrença, onde apenas a voz do Conde de Arnoso – secundada, no exterior, pela do plebeu Ramalho Ortigão – se elevou para exigir que as responsabilidades homicidas do drama do Terreiro do Paço não ficassem impunes. Porém, é de presumir que o novo rei tivesse sido aconselhado a moderar o seu envolvimento nesta matéria, deixando para o inquérito judicial a imputação definitiva das culpas. D. Manuel II estava manifestamente impreparado para as responsabilidades da alta função em que se viu investido. Não fora educado para tal, e o seu próprio feitio, reservado e fugidio, contrastava em tudo com o mundanismo loquaz e com a fortaleza de convicções de que o seu pai dera provas. Por isso, não surpreende que se tenha entregue à vigilante tutela que lhe foi oferecida por sua mãe, a rainha Dona Amélia. O drama familiar recentemente vivido concorrera, quanto a esta, para fazer compensar a recente viuvez com o enfeudamento recorrente à vivência religiosa. Dona Amélia rodeou-se de directores espirituais jesuítas, dominicanos e lazaristas, tornando também o seu filho excessivamente permeável a tipos de mentalidade em que preponderava a devoção beata. Quando os primeiros revoltosos puderam penetrar nos aposentos privados do rei deposto, após o triunfo da revolução de 5 de Outubro de 1910, foram aí encontrar uma decoração de sacristia, onde abundavam as imagens sacras, as estampas pias, os oratórios, os terços, etc. As restantes individualidades que também o aconselhavam, como José Luciano de Castro, Venceslau de Lima ou o Marquês de Soveral, não souberam ou não quiseram antepor os mais determinantes interesses nacionais às vantagens de casta, de grupo ou de partido.

Logo em Janeiro de 1909, o jornal O Mundo, de marcada orientação republicana, divulgava uma entrevista, concedida por Bernardino Machado (outro trânsfuga das fileiras monárquicas …), onde esta declarava que os erros passados e actuais da monarquia tornavam inevitável a eclosão de manifestações revolucionárias em Portugal. O que tornava tal depoimento especialmente significativo era o facto de Bernardino Machado, professor da Universidade de Coimbra, ser conhecido como um dos mais contemporizadores militantes republicanos. Ele não secundara, num passado não muito distante, a estratégia de ruptura e de imediata confrontação que, após o Ultimato inglês de 1890, fora insistentemente preconizada, nomeadamente, por João Chagas, Alves da Veiga, Felizardo de Lima ou Basílio Teles. Durante anos, o seu discurso irritara visivelmente muitos dos seus correligionários, ao propugnar uma lenta evolução de mentalidades, resultante de uma pedagogia pacífica, persuasiva e demonstrativa da superioridade da república sobre a monarquia. Bernardino Machado não poderia ignorar os avanços que a organização revolucionária fizera desde os tempos rigorosos da ditadura de João Franco. Não lhe eram desconhecidos, sobretudo, os progressos da Carbonária, que se vinha singularizando como o verdadeiro braço armado de uma futura revolução republicana. O lente coimbrão não lhe conhecia detalhadamente todos os meandros. Aliás, nem sequer os bons primos das choças carbonárias entravam na posse de conhecimentos relativos a toda a estrutura organizativa. Só os directores da Alta Venda, como Machado Santos, António Maria da Silva e Luz Almeida, dominavam os segredos desta força armada, deste exército de sombras, que cooptava os seus futuros combatentes com a maior reserva, os vinculava a juramentos iniciáticos e os recrutava sobretudo junto das mais baixas patentes militares. Não será aventuroso sustentar que a entrevista de Bernardino Machado ao jornal O Mundo simbolizava o irreversível reconhecimento do futuro papel das armas, mais do que do raciocínio pedagógico, na mudança iminente das instituições e dos poderes.

Os próprios círculos oficiais não ignoravam totalmente estes aliciamentos, pressentindo que a revolução rondava por perto. Em Lisboa, corria à boca pequena que a propaganda republicana derramava a sua sedução pelo conjunto das forças armadas monárquicas, embora se dissesse que a marinha era deveras permeável ao fascínio do “barrete frígio”. À cautela, António Cabral, ministro da Marinha e Ultramar do gabinete Campos Henriques, que então vigorava, ordenou em Fevereiro à tripulação do cruzador D. Carlos que seguisse para Port-Said, não fosse o diabo tecê-las …

Apesar disto, o mês de Fevereiro de 1909 não se apresentou como especialmente nefasto para as esperanças da monarquia constitucional, caso tal juízo abonatório seja feito apenas a partir da retumbância de certas solenidades exteriores. Foi no decurso deste mês que, irmanados por ideais comuns e por similares imperativos de sobrevivência, D. Manuel II de Portugal e Afonso XIII de Espanha conferenciaram demoradamente em Vila Viçosa. Por outro lado, teria sido com júbilo que se divulgou, na Corte, a notícia de que o ramo miguelista renunciava à sua pretensão de reivindicar a coroa portuguesa. A sucessão de D. Pedro IV passava a deter, de acordo com tal renúncia, o exclusivo da legitimidade dinástica. Foi também por então que se inaugurou em Lisboa o monumento ao marechal Saldanha, esse irrequieto enfant terrible, agora perenizado na estatuária , mas que tantos amargos de boca causara a Dona Maria II e a D. Pedro V.

4 comentários:

João de Castro Nunes disse...

D. MANUEL II

Com ele terminou a dinastia
por outro Manuel iniciada:
há quase nove séculos fundada,
findou também com ele a monarquia.

Previsto não estava que reinasse
por ser filho-segundo, mas o certo
é que o Acaso quis ou Deus decerto
que esse destino ingrato lhe tocasse.

Renunciou ao trono muito moço
e sem alarde, em paz, sem alvoroço,
partiu para o exílio... de bom grado.

No Panteão Real jaz sepultado
ao pé do seu irmão, cujo lugar
ele assumiu no ofício de reinar!

JOÃO DE CASTRO NUNES

João de Castro Nunes disse...

UM JOVEM REI NO EXÍLIO

Discretamente, de cabeça erguida,
sem qualquer enxovalho popular,
D. Manuel Segundo na partida
deu mostras de um carácter singular.

Leva no peito em sangue uma ferida
que nunca mais havia de passar,
uma chaga recôndita, escondida,
que faz questão de para si guardar.

Entregue aos seus estudos na Inglaterra,
nem por isso, na sua solidão,
deixou de ter em mente a sua terra.

Com ele morre toda a esperança
de persistir a Casa de Bragança
à frente dos destinos da Nação!

JOÃO DE CASTRO NUNES

Luís Alves de Fraga disse...

Como sempre, uma síntese brilhante que permite ao comum dos leitores perceber as linhas gerais do que foi o curto reinado do último monarca português. E foi importante que chamasse à colação a postura de Bernardino Machado, figura controversa no seio republicano, pois para bloquear a sua acção anti-revolucionária teve Luz Almeida, no congresso do PRP, realizado em Setúbal, de engendrar a votação numa lista onde estava representada a Carbonária, força que, tal como o meu Amigo diz, conduziu, afinal, a revolução vitoriosa em 5 de Outubro, em Lisboa, já que, ao contrário do que se afirma em certos meios, a República foi aclamada mais cedo em muitas localidades do país.
Obrigado por mais este apontamento.

Fernando Torres disse...

São APONTAMENTOS destes que nos permitem reconstituir a rota, para percebermos como aqui chegámos.