
Apercebemo-nos fragmentariamente da realidade. O nosso fragmento é o recanto da nossa humanidade. Mas é só um recanto. Ando às voltas com o grotesco na arte, na literatura, na caricatura e dou-me conta que o vocábulo não merece a desvalorização que se lhe associa. Imputamos ao grotesco uma condição de monstruosa menoridade. A verdade é que nele residiu a primeira mensagem da abordagem da realidade plástica como um todo. A descoberta, no século XV, da “Domus Aurea” , de Nero, revelou aos olhos espantados dos arqueólogos do tempo um novo modo de ver. É que, salvo opinião mais qualificada, a Arte mais não é do que a incessante ruptura da solidão, a caminho de um novo diálogo. Ora, o diálogo que foi travado até à Renascença ressentiu-se do facto de se julgar que a dominância de Deus tornava Dele dependentes as realidades criadas e sublinhava a precaridade e fragilidade de todas as “criaturas”, fossem vivas ou inertes. Ora, o que foi revelado nos frescos que, por se encontrarem no subsolo, tiveram a designação de “grotescos” – como coisas vindas das grutas – isso que desta sorte foi trazido à tona das perplexidades humanas, consistiu num tipo de objectividade que repudiava a segmentação do real. A lógica dos “três reinos” – animal, vegetal e mineral - , tão esforçadamente estabelecida na Meia Idade, recebia aqui um desmentido formal. É que a haste de uma flor, nascida da terra, podia prolongar-se para o rosto de um sátiro, ou enovelar-se numa folha de acanto, ou configurar-se num animalejo monstruoso, ou até servir de sustentáculo ao trono de uma deidade. Ou seja, o “continuum” do real – dizemo-lo hoje … - anunciava Darwin ou as diversas modalidades de monismo. Esta novidade foi intuída claramente pelo génio do Romantismo oitocentista e por um dos seus mais qualificados intérpretes : Victor Hugo. Foi ele que, no prefácio do “Cromwell”, veio afirmar que a arte do seu tempo e a que se lhe seguiria não mais poderia olvidar que entre a objectividade e a subjectividade, entre a matéria e o espírito, entre o animal e o homem, entre o belo e o feio, entre a covardia e o heroísmo, entre a serpente e a maçã, vai a distância que separa o Todo das partes, ou seja, vai a cesura que inexiste entre o Físico e o Metafísico.