1 de junho de 2011

A FILHA DO QUIM VENDEIRO

Ao Engº Carlos Ferreira, meu Amigo, que gosta das minhas ficções.

A filha do Joaquim Vendeiro era loira, apresentava uns olhos azuis e muito redondos, como se fossem feitos de cristal de rocha, incrustados num rosto de porcelana, e era invulgarmente alta para a sua idade. Sempre que na casa da avó havia dúvidas sobre o neto que haveria de ir num pulo à venda do Vendeiro, eu, muito lépido, simulava o jogo da exemplaridade, dizendo: - “Ora essa , Vóvó, vou já para lá a correr”. E como os primos fossem songa-monga, inaptos de vista ou de codícia, eu saía pelo portão, como um foguete, e chegava esbaforido à porta do Quim Vendeiro, com uma folha de encomendas na mão e um vácuo cardíaco que ainda se agravava mais se a filha do Joaquim Vendeiro não comparecesse ao encontro apenas sonhado.

Na aldeia havia hierarquias sociais muito rígidas. No topo da pirâmide hierárquica estava a Avó, que até ainda era prima em segundo grau do Vendeiro. Mas o Avô, médico João-Semana, tinha amanhado os trapinhos com aquela analfabeta, linda de morrer no seu porte amouriscado. Fizera-lhe, com toda a consciência demográfica, – para além da lascívia animal que nessa altura era censurada acremente pelo Senhor Prior – meia dúzia de filhos, que ela parira orgulhosamente sem a assistência de outro arrimo para além do seu próprio parceiro de cama e de Destino. Um João-Semana médico, nessa altura, era, na aldeia, um ornamento e uma utilidade; um ornamento, porque poder salvar-se alguém como Hipócrates das berças – “boa tarde, Senhor Doutor” – representava o Sétimo Céu de uma população que ainda encarava um clister ou uma injecção como forma de bruxedo, embora mais qualificado; mas era também uma utilidade complementar às infusões de erva-cidreira ou de flor de laranjeira, uma espécie de última instância no tribunal contingente da vida, ao qual se recorria em desespero de estômago ou de tripa. Por todos estes motivos, acrescidos dos que advinham de meia dúzia de terras de semeadura, quase todas de sequeiro, e de quatro pinhais, a casa da Avó – assim chamada porque o Avô morrera inesperadamente com uma “angina pectoris” – fazia o figuraço homólogo da “Domus Aurea” de Nero, no período antecedente ou consequente (os arqueólogos que o decretem) ao incêndio de Roma.

Mas quem se encontrava de alma incendiada, por muito que desejasse ocultá-lo, … era eu. A filha do Quim Vendeiro era, dia-sim dia-não, a imagem que me ajudava a adormecer, vogando no azul dos seus olhos muito redondos, e me animava o acordar, com a ideia fixa de que talvez as provisões da despensa pudessem revelar défices de abastecimento, que me permitissem promover a boa-vontade com que corria como um gamo até à tenda do Vendeiro. A Avó, completamente absorvida pela ingente tarefa de alimentar a considerável descendência, nem reparava na lépida disponibilização dos meus préstimos. Mas havia uma pessoa que eu não enganava, que eu nunca consegui iludir: a minha Mãe. Num desses dias em que eu me aprestava para esquadrinhar todos os ângulos da locanda do Vendeiro, a minha mãe chamou-me de parte e disse-me: -“ Meu filho, tu és crescidinho e não te tenho por tolo. O que eu te quero dizer, de uma só vez e sem mais palavreado é isto: a filha do Vendeiro não está à tua altura. E agora desanda”. Foi como se estivesse a olhar para o firmamento e caísse, de chofre, num charco de águas pútridas. Ainda por cima, numa altura em que eu já havia combinado com a filha do Quim Vendeiro um romântico “rendez-vous”, logo a seguir à janta, nas cercanias do poço do Pinhal Novo. Mesmo assim, à hora combinada, lá estava eu, a espreitar a vereda inóspita que separava a aldeia da cintura verde das cercanias imediatas. E foi assim que a vi, ligeira, muito loira, volitante como um pássaro novo, determinada como uma andorinha, galgando a distância com o seu passo de gazela.

Não me contive e ainda ela não tinha chegado junto a mim já as lágrimas, grossas e impotentes, me corriam pela cara abaixo. - “Então, que tens tu, meu lindo ?” - “não sei, já não sei nada, esta vida é uma merda” – “vê como falas, olha que o meu pai nem aos jogadores de sueca permite palavrões; além disso, o Senhor Prior também não gosta” – “pois, mas imagina que a minha Mãe diz que tu não estás à minha altura”. Foi então que no pinhal aconteceu um súbito, infinito silêncio. Aqueles olhos azuis, muito redondos, eram fios de gelo a perfurar o meu rosto, a procurar o esquivo da minha expressão confusa. Pela primeira vez desde o nosso segredo, ela colocou as suas mãos por baixo do meu queixo, obrigou os meus olhos peregrinos a fitar de frente os seus olhos crentes e disparou : “ E tu, que pensas disso?” – “Merda, merda, merda, não sei, sei lá, como queres que saiba? Só tenho catorze anos, ainda nem ando na Universidade…” – “Vá, não digas mais tolices; fecha os olhos bem fechado e conta até vinte. Abre-os aos vinte e um. Verás que o teu problema ficará então resolvido”. Lembro-me que comecei a contar um, dois, três … quinze, dezasseis … dezanove, vinte. Aos vinte e um abri os olhos e verifiquei que estava muito só e muito infeliz, junto ao poço do Pinhal Novo.

A Avó faleceu no ano seguinte e o clã familiar dispersou. Só voltei à aldeia muito tempo depois, já bem espigado, num dos últimos anos do meu curso universitário. Foi uma romagem de saudade à casa dos Avós, agora habitada por fantasmas benfazejos. Lembro-me que a loja do Quim Vendeiro estava transformada num cabeleireiro, especificamente designado como sendo “de senhoras”: “Haja altura ! – Cabeleireira de Senhoras”, rezava a tabuleta.

4 comentários:

João de Castro Nunes disse...

Ante o pejo social
que prende ao solo o doutor,
admiro em si, Professor,
sua destreza mental!

JCN

João de Castro Nunes disse...

Invejo-lhe a faculdade
de alardeando cultura
não mostrar dificuldade
em fazer sua leitura,
apesar da quantidade
dos domínio que mistura!

JCN

João de Castro Nunes disse...

Acaso sabe onde pára
essa filha do vendeiro
que em rapaz o enfeitiçara
com seus olhos de luzeiro?!

JCN

João de Castro Nunes disse...

Nada há que pague um olhar
da cor do céu, Professor,
para nos fazer sonhar,
seja na idade que for!

JCN