26 de outubro de 2011

APONTAMENTO SOBRE A CARICATURA

Pode dizer-se que a caricatura constitui a ilha de um continente muito maior: o continente da imagem satírica. Embora haja quem considere que toda a satirização plástica é caricatural, a verdade é que, tradicionalmente, a caricatura se aplicou à deformação e recomposição dos traços fisionómicos das pessoas. Tal como o riso pode comportar dois significados – o da integração simpática e o da exclusão antipática – assim a caricatura pode assumir a benevolência de nos apresentar um rosto indutor de reacções complacentes ou a implacabilidade de nos dar um rosto susceptível de um juízo de repulsa. Em regra, a caricatura política, por se encontrar fundada sobre um maniqueísmo valorativo, expressa-se através da indução do segundo daqueles risos, compelindo a respostas sardónicas e desqualificantes. A caricatura situa-se nos antípodas da doutrina de Jesus, o qual, explicitamente, de acordo com o testemunho dos Evangelhos, aconselhava os seres humanos a “não julgar segundo o rosto”. Mas o desígnio da caricatura é exactamente esse: o de permitir, através de uma “visão-outra”, que nos é trazida pelo sublinhado de alguns elementos morfológicos da face, o de consentir, mediante a descoberta de uma verdade interior, até então oculta, julgar através dum rosto. O caricaturista seria então uma espécie de mago, um adivinhador de signos e sinais, um profeta de morfologias antropológicas. Ele seria animado por uma sorte de feitiçaria, de talento de adivinhação, trazendo á superfície os segredos recônditos de uma personalidade. A caricatura, quando preenche efectivamente o lugar a que tem direito no mundo da Arte, quando se destaca da simples intenção do “fazer engraçado”, comporta pretensões demonstrativas evidentes. Por isso é que o trabalho, decerto honrado mas primário, dos chamados “caricaturistas de boulevard”, não atinge a craveira suficiente que imediatamente reconhecemos aos caricaturistas de corpo inteiro, como Daumier, Hogarth, Rafael Bordalo Pinheiro, Leal da Câmara ou João Abel Manta. A intencionalidade caricatural pode respeitar ao corpo todo. O exagero das grandes barrigas ou o rectilíneo das figuras esquálidas têm fornecido a inúmeros caricaturistas uma parte da matéria-prima do seu trabalho. Mas a alvo preferencial da caricatura é, inquestionavelmente, o rosto. Diz o saber popular que “o Mal e o Bem ao rosto vem”. Por isso, esse acto pictórico de olhar, a partir de fora, para o que está dentro, de divisar, a partir da altura da testa, da comissura dos lábios, do prognatismo ou da falta dele, da implantação das orelhas, do feitio do nariz, do rasgo dos olhos, de vaticinar, a partir do que “está aí”, o que “aí se anuncia”, esse sortilégio de auscultar os segredos do Animus absconsus, essa faculdade constitui, numa palavra, a grandeza da Arte: a grandeza de nos fornecer uma Verdade mais verdadeira do que aquela que é tão cerradamente manifesta.

2 comentários:

João de Castro Nunes disse...

Diz muito bem, Professor:
é pela caricatura
que se apanha o interior
de uma qualquer criatura!

JCN

João de Castro Nunes disse...

A melhor caricatura
sobre o povo português
foi a que Bordallo fez,
eternizando a figura!

JCN