6 de abril de 2012

CRIADORES E CRIATURAS



Um silêncio sem nome pairou sobre aquele deserto.
Diriam porém os sábios ( se os houvesse)
Que uma gota aquosa se tinha soltado do frio da noite.
Naquele tempo, porém, não havia Sábios nem Doutores
(Ainda não tinham sido inventados …)
Apenas aquela gota estava ali, tremendo ,
Pousada na luz incerta da vaga madrugada.
Disseram alguns muito mais tarde que um Deus qualquer
Irritado com a sua própria solidão
Criara a gota para a ver tremeluzir no clarão da manhã
E que, achando-a gentil, lhe deu por companhia outra gota
Mas esta já destinada a rolar docemente até à terra sedenta.
Se os Doutores já tivessem tirado licenciaturas
Eles diriam, graves e sistemáticos, que duas gotas
Se podem amar no translúcido madrugar
E de tal forma que comoveram o coração impávido de Deus.
Nunca veio a saber-se do bilhete de identidade do tal Criador
Porque ele deixou a documentação apenas para as criaturas.
E foi assim que Iavé ou Cristo ou Mafoma ou os três juntos
Decidiram dar companhia às duas gotas que se amavam
Criando então as folhinhas verdes que lhes serviam de pousio.
Como naquele tempo também não se tinham inventado gastrónomos
Ninguém soube, de papel passado, se no festim dos Deuses Criadores
Poderiam ter-se comido caldos verdes. O que disseram foi que
Criado o verde dos prados, se tornara forçoso colocar animais a pastar.
De todos os animais criados, só um mereceu decreto de excomunhão.
Pobre do porco! Mas mesmo esse recebeu indulgências cristãs
Dizendo até os futuros Sábios que quem quer conhecer o seu corpo
Obrigatório será matar o seu porco, pobre dele !
Parece que os tais Divinos Demiurgos travaram rija discussão
Acerca de todos os animais, dando ao porco honras de problema.
E como Iavé e Maomé não havia meio de cederem
Obrigou-se Cristo a fabricar o Homem, para desempatar.
O Homem-criatura seria já um magno problema
Pois não servia para rigorosamente nada. O pior foi
Darem-lhe opinião, fazendo dele um Sábio, com licenciatura.
A partir daí, esgotou-se a tranquilidade dos Deuses.
É que o Homem-Sábio não se limitou a beber a água
A comer os animais (incluindo o pobre do porco)
E a vociferar muito sobre a Pedra Filosofal de venturosa memória.
O pior foi tal Sábio ter proclamado que aqueles Deuses
Eram apenas uns ignorantões, que nada sabiam
Sobre os pesos atómicos das pedras, a química da água
E a digestão dos animais. Consta que os Deuses
Apercebendo-se do erro fatal em que tinham incorrido
Quiseram abolir a Criação. Já não foram a tempo
Porque então já as gotas eram rios, os rios, mares,
As ervas , bosques, os animais, rebanhos.
E os homens, depois da globalização, tornaram-se todos sábios
Para descobrirem o melhor processo de demostrarem a inexistência
De todos e de cada um dos Deuses. Consta que não estão a ter sucesso
(Apesar de licenciados, valha-os Deus, valha-os os Deuses).
E por cada madrugada há mais e mais gotinhas, amando-se
Ao sol indeciso da manhã. Deus ( a existir ) seja louvado, por isso.

2 comentários:

João de Castro Nunes disse...

Em termos de poesia
sua prosa, Professor,
muito mais que de ironia
possui carradas de humor!

JCN

João de Castro Nunes disse...

A qualidade maior
que a natureza lhe deu
foi decerto, Professor,
a de não ser fariseu!

JCN