
Não se tratou, como é óbvio, de um trabalho solitário. Bruno Carreiro teve a sorte e o talento de encontrar e de garantir o concurso de valiosíssimos colaboradores e apoiantes. Neste grupo contam-se os nomes de Luís de Magalhães, João de Barros, Vitorino Nemésio e, acima de quaisquer outros, o de Cândido Nazaré. Este último, funcionário da Imprensa da Universidade de Coimbra, serviço cultural que o autoritarismo salazarista haveria de encerrar, partilhava com Bruno Carreiro o fervor por Antero de Quental e era um bibliófilo criterioso. As cartas agora publicadas dão-nos bem a noção da amplitude e da qualidade dos serviços prestados por Cândido Nazaré ao biógrafo de Antero. A história da colaboração entre ambos instala-nos na consoladora certeza de poder ser a Cultura um sulco de partilha solidária e fraterna entre pessoas politicamente distantes, quando não mesmo antinómicas. É certo que ambos haviam nascido em Coimbra. Mas essa comunidade de berço nativo não apagava a contradição das opções ideológicas. José Bruno Carreiro possuía arreigadas convicções monárquicas, reveladas muito explicitamente, no que respeita ao livro organizado por Ana Maria Martins, numa das cartas dirigidas a Luís de Magalhães. Cândido Nazaré pagou ao salazarismo o duro preço da sua coerência republicana e democrática, tendo sido perseguido, julgado, condenado e finalmente privado pelo Poder hegemónico do seu posto de trabalho na função pública. Foi com sincera solidariedade que Bruno Carreiro se prestou a contactar gente do foro em benefício do seu amigo, acalentando a esperança, que viria a revelar-se ilusória, de que ele poderia vir a ser julgado em Angra do Heroísmo. E damo-nos conta da consternação que lhe provocou a notícia da sentença condenatória com que Cândido Nazaré se viu punido e da correspondente perda do seu emprego.
Nas suas linhas fundamentais, a obra apresentava já o cariz de coisa acabada por volta de 1934. Tenhamos bem presente que é um eufemismo falar em coisa acabada para um espírito tão inconformado e ávido como o de José Bruno Carreiro. É de presumir que se ele ainda pertencesse ao mundo dos vivos e se a luz do discernimento lhe não faltasse, estaria porventura a imprimir ou a tentar publicar uma nova edição do seu Antero de Quental com mais uma mão cheia de novidades. O autor do livro não hesitou quanto à seriedade e ao mérito intrínseco do seu labor. Encarou o “cartapácio” – assim gostava de designar a obra - como “um grande armazém de materiais” (Carta a Vitorino Nemésio, de 5 de Dezembro de 1948), sim, mas de materiais certos, seguros, fiáveis, resistentes a todos os contraditórios da heurística e da hermenêutica. No entanto, uma incerteza o apoquentou. Saiu-lhe ao caminho a eterna dúvida que sempre assola todos os autores conscientes: a dúvida inerente ao olhar dos outros. Como iria ser julgado o seu trabalho? Uma coisa era o solilóquio apaziguante, o murmúrio sereno de si para consigo, que lhe dava a garantia da sua rígida exigência de verdade. Outra, muito diferente, era a ventura ou desventura de uma obra lançada, como filha dilecta , aos combates incertos do vasto mundo literário. Os hipotéticos juízos dos demais, essa alteridade sentida como eventualmente hostil, instilou no seu espírito, habitualmente tão positivo e seguro, o veneno entorpecente da dúvida. Por isso o encontramos, em Outubro de 1936, a desabafar assim para o inevitável Cândido Nazaré : “Saiu aquilo por fim. Uma coisa com interesse? Um pastelão monstruoso? Tudo pode ser”. Bruno Carreiro iria desatar o nó górdio desta dúvida. Fê-lo, contudo, com o pragmatismo realista e com a modéstia que, segundo o nosso ponto de vista, sempre avultaram como traços salientes da personalidade deste incansável trabalhador. Aos seus próprios olhos, o trabalho encetado cumpria as exigências que a si mesmo havia imposto, configurando uma “obra completa, séria e sólida”, em conformidade com o programa definido numa sua carta a Luís de Magalhães, datada de 19 de Dezembro de 1930. Porém, se o seu labor colmatava omissões, corrigia imprecisões e conferia exactidão a muitos dos aspectos biográficos da vida de Antero de Quental, ninguém poderia legitimamente encará-lo como uma reconstrução do evoluir espiritual e da aventura mental do seu biografado. José Bruno Carreiro teve a exacta percepção dos limites da sua obra. Quando Forjaz de Sampaio publicou a sua História da Literatura Ilustrada dos Séculos XIX e XX, que ficou incompleta, pediu a José Bruno que redigisse o capítulo referente a Antero. Este anuiu, mas logo esclareceu que só poderia fornecer a bibliografia e uma biografia, por lhe faltar, segundo as suas palavras, “competência para o estudo do pensamento do homem”. Na conversação entre Forjaz de Sampaio e Bruno Carreiro aventara-se a possibilidade da “parte crítica” poder ser entregue a Joaquim de Carvalho ou a António Sérgio. Mas o que viria a ser estampado seria apenas o contributo de José Bruno. Narrando o episódio a Vitorino Nemésio, numa carta de Novembro de 1940, a sua indignação, temperada por um sentimento muito autêntico de modéstia, expressou-se assim : “Qual não foi, porém, o meu assombro, ao ver que o Forjaz de Sampaio considerou completo, apenas com isso, o capítulo “Antero” e que nem uma palavra nele havia sobre a obra ! Não pode haver vergonha maior, numa História da Literatura, num capítulo sobre Antero, em que o que mais interessa e maior importância tem é precisamente a obra. Quem ler aquele capítulo, há-de imaginar que eu tomei o encargo de escrevê-lo e que o julguei completo com as notas biográficas que lá pus! Seria de burro!”.
Terminado o trabalho, cumprido desde sempre com beneditina aplicação, seguiu-se a procura de editor. Seria uma demanda problemática, atendendo ao considerável financiamento requerido pelas dimensões do minucioso trabalho. Decorreu mais de uma dezena de anos para que a obra Antero de Quental. Subsídios para a sua biografia fosse dado ao prelo. Falharam, umas atrás das outras, as hipóteses de publicação sob a tutela, nomeadamente, da Imprensa da Universidade de Coimbra, da Biblioteca da Universidade de Coimbra, da Editora Portucalense, de Barcelos, da Casa Bertrand ou da Editorial Inquérito. Só em 1948 a Sociedade Astória, Ldª o imprimiu, sob a responsabilidade editorial do Instituto Cultural de Ponta Delgada. Santo Antero demorou bastante, como se vê, a propiciar este pequeno milagre gráfico. Também não foram generosos na sua estridência os clangores da imprensa para saudarem o grande milagre de se ter criado tamanho monumento bibliográfico e biográfico num mimoso arquipélago de formação vulcânica e de tessitura sonhadora, embalado pelos cheiros da maresia atlântica e pelas almas pertinazes dos seus habitantes. José Bruno Carreiro, conforme o assinala Ana Maria Martins numa das suas esclarecedoras notas, ficou contente com as loas de uma notícia anónima, “de pouco mais de dez linhas”, surgida no Diário de Notícias, em Dezembro de 1948. As grandes devoções contentam-se com pouco e os servidores da Cultura já há muito se habituaram à subalternidade que lhes reservam os órgãos da imprensa diária. Fica a obra. Isso lhes basta.
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