“O mundo está cheio de sinais!”. Era isto que pensavam os que se dirigiam a Delfos, ao templo onde a Pítia era acometida por furores estranhos, colocados ao serviço de sagrados palpites. “O mundo está cheio de sinais”, sim, mas nós não os vemos. E se os vemos, não os sabemos interpretar. E se os interpretamos, não os sabemos gerir. Um dos surrealistas de boa cepa, Roger Vitrac, escreveu um dia uma peça profética : Victor ou as Crianças no Poder. Era um sinal premonitório tão certeiro como o foi o retrato de Apollinaire pintado por Giorgio De Chirico. É uma peça perturbante, melhor dito, são duas peças perturbantes : a de Vitrac e a de De Chirico. Nesta última, Apollinaire é representado em dois registos gráficos: o da frente semelha uma Vénus clássica, mas ostenta óculos escuros, como se Appollinaire fora cego. A cegueira, na Cultura Clássica era um sinal de sapiência (Homero também ficara cego, talvez antes de escrever a Ilíada e a Odisseia). Mas De Chirico desenha em fundo, à maneira das sombras chinesas, um segundo Apollinaire, de perfil. E este apresenta um alvo na têmpora: o alvo com que uma bombarda o iria ferir, no decurso da Primeira Grande Guerra, ou seja, no decurso da primeira passagem de Victor pelo Poder. “O Mundo está cheio de sinais” e a Pítia de Delfos revolve-se de cada vez que recebe em cheio o sopro íntimo, vulcânico, sulfuroso da terra. Será um acaso se em português a têmpora de Apollinaire, sem o circunflexo , faça lembrar a maldição do “Oh tempora, oh mores !” – “oh, tempos, oh costumes !” – que os estudantinhos do meu tempo e eu próprio traduzíamos assim : “Oh, tempo das amoras …” ? Será só um acaso ? Os sondadores dos sinais, pelo menos aqueles em quem eu poderia confiar, morreram. Morreram, ouviram?Morreu Marx, e Apollinaire, e Aragon, e André Breton e Salvador Dali, e Freud, e De Chirico e Max Ernst. Quem não morreu foi a Pítia de Delfos, revolvendo-se, cataléptica, no chão. É ela que procura impedir a terceira (e fatal?) tomada do Poder por Victor, criança de revólver em punho, a querer jogar à roleta russa. Resta a Pítia, enroscando-se no chão ou numa erecta postura alucinada, lançando ao mundo avisos sibilinos e tão certeiros quanto os da têmpora antecipada de Apollinaire, na pintura de De Chirico. 21 de fevereiro de 2007
TEMPOS DE PREMONIÇÃO
“O mundo está cheio de sinais!”. Era isto que pensavam os que se dirigiam a Delfos, ao templo onde a Pítia era acometida por furores estranhos, colocados ao serviço de sagrados palpites. “O mundo está cheio de sinais”, sim, mas nós não os vemos. E se os vemos, não os sabemos interpretar. E se os interpretamos, não os sabemos gerir. Um dos surrealistas de boa cepa, Roger Vitrac, escreveu um dia uma peça profética : Victor ou as Crianças no Poder. Era um sinal premonitório tão certeiro como o foi o retrato de Apollinaire pintado por Giorgio De Chirico. É uma peça perturbante, melhor dito, são duas peças perturbantes : a de Vitrac e a de De Chirico. Nesta última, Apollinaire é representado em dois registos gráficos: o da frente semelha uma Vénus clássica, mas ostenta óculos escuros, como se Appollinaire fora cego. A cegueira, na Cultura Clássica era um sinal de sapiência (Homero também ficara cego, talvez antes de escrever a Ilíada e a Odisseia). Mas De Chirico desenha em fundo, à maneira das sombras chinesas, um segundo Apollinaire, de perfil. E este apresenta um alvo na têmpora: o alvo com que uma bombarda o iria ferir, no decurso da Primeira Grande Guerra, ou seja, no decurso da primeira passagem de Victor pelo Poder. “O Mundo está cheio de sinais” e a Pítia de Delfos revolve-se de cada vez que recebe em cheio o sopro íntimo, vulcânico, sulfuroso da terra. Será um acaso se em português a têmpora de Apollinaire, sem o circunflexo , faça lembrar a maldição do “Oh tempora, oh mores !” – “oh, tempos, oh costumes !” – que os estudantinhos do meu tempo e eu próprio traduzíamos assim : “Oh, tempo das amoras …” ? Será só um acaso ? Os sondadores dos sinais, pelo menos aqueles em quem eu poderia confiar, morreram. Morreram, ouviram?Morreu Marx, e Apollinaire, e Aragon, e André Breton e Salvador Dali, e Freud, e De Chirico e Max Ernst. Quem não morreu foi a Pítia de Delfos, revolvendo-se, cataléptica, no chão. É ela que procura impedir a terceira (e fatal?) tomada do Poder por Victor, criança de revólver em punho, a querer jogar à roleta russa. Resta a Pítia, enroscando-se no chão ou numa erecta postura alucinada, lançando ao mundo avisos sibilinos e tão certeiros quanto os da têmpora antecipada de Apollinaire, na pintura de De Chirico.
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