Todas as revoluções têm os seus heróis anónimos. São os que mais contribuem para as fazer vingar, mais forcejam para as ver florir, mais batalham para as impor resolutamente a todos os demais. Estes heróis não se limitam a ser crentes – são convictos. Não se contentam em ser seguidores – são mentores. Não se prestam a ser ecos – são, eles próprios, vozes sonoras e altivas. É sabido que a história de todas as revoluções demonstra que são elas as primeiras a devorar os próprios filhos, e, dentre esses, os mais dilectos. A revolução francesa de 1789 eliminou Robespierre; a revolução russa de 1917 veio a assassinar Trotsky; a revolução portuguesa de 1974 exilou e subalternizou os que por ela mais se haviam sacrificado. O grande herói - e contudo um dos mais anónimos - da revolução de Abril de 1974 foi, para nós, Salgueiro Maia. Em Santarém, no Terreiro do Paço, no Quartel do Carmo, em todos os lances arriscados e decisivos desse solene momento revolucionário, Salgueiro Maia foi a calma decisão que não desiste, a consciência ética que não capitula, a Democracia excelsa que não embota ou empalidece. Salgueiro Maia sofreu na carne a dura profecia da ingratidão revolucionária. Nada quis senão o cumprimento do seu compromisso revolucionário. Nada pediu senão que lhe não viessem desvirtuar a pureza das suas primitivas intenções. Mas logo que os políticos se apossaram do mando, trataram de o anular e vexar. Muitos deles gostariam de ter sido Salgueiros Maias. Mas citadinamente, calculadamente, sem arriscarem o corpinho, sem jogarem todo o seu destino individual, sem correrem o risco das balas e das adagas, sem sacrificarem um átomo das conveniências e conivências das suas confortáveis carreiras. Era óptimo, pensaram eles, virem a ser heróis de sofá, beberricando goles de uísque de malte, longe das agruras de Santarém, do Carmo, do Cais das Colunas e das vielas de Lisboa, por onde então escorriam torrentes de Povo, gritando muito e cheirando ao suor do trabalho honrado. Por isso, trataram de insinuar, a torto e a direito, que o Movimento das Forças Armadas era uma treta e que os Oficiais como Salgueiro Maia eram títeres de papelão, ingénuos equivocados, sem o jogo de cintura da hipocrisia e da duplicidade, uma e outra necessárias ao sucesso fátuo da politiquice rendosa. E aí os temos, no cerimonial de um dia (que já desprezam), envergonhados da flor revolucionária, não querendo usar o cravo na lapela, para mais facilmente poderem plantar na alma, em escondida manobra, o fétido rizoma da perfídia. O que eles não podem é silenciar o juízo implacável da História, que hoje lhes grita: - Vede, bando soturno e comatoso, como estais já mortos em vida! Olhai, cretinos, como está vivo e esplendoroso Fernando José Salgueiro Maia, o Grande Capitão do nosso Abril eterno.
25 de abril de 2007
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4 comentários:
Nasci depois do 25 de Abril. Tudo o que sei desta data foi-me daddo a conhecer pelos livros e pelas vozes de quem o viveu. Tem razão quando diz que o principal herói deste momento é um quase anónimo. Salgueiro Maia!Mas também lhe digo que no meu imaginário ele é o Homem desse dia. São as fotos com esse homem maravilhoso que me vêm à mente quando penso no 25 de Abril. Daí que o anonimato seja um pouco subjectivo. Viva Salgueiro Maia!
concordo com o que está escrito no post, Salgueiro Maia tb é o meu herói!
Meu Caro Amigo,
Conheci pessoalmente o Salgueiro Maia – mal, é certo, mas conheci. Não sei exactamente o ano de entrada dele na Academia Militar, mas presumo que tenha sido em 1963 (as notas biográficas na Internet referem 1964). Se assim foi, estava eu avançado, havia mais dois (ou três) anos, naquele estabelecimento de preparação de oficiais. Confesso que não me recordo da sua figura nessa altura… Éramos tantos! Depois de 25 de Abril cruzámo-nos no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), em 1977 – uma vez mais, eu era já finalista e ele andava pelos últimos anos. Conversámos vagamente sobre a situação política de então, mas coisa pouca. A sua índole reservada não deu para fazermos grandes análises do momento. Ele não queria falar e achava prudente manter-se afastado de todo o envolvimento político. Tinha cumprido a missão que lhe coubera no dia 25 de Abril e acreditava que o lugar certo dos militares era nos quartéis. Nos quartéis, mas vigilantes. Recordo-me que no ISCSP havia uma forte militância de esquerda que procurava a todo o transe enredá-lo, cautelosamente, nas malhas partidárias. Fugia disso com grande frontalidade.
Salgueiro Maia vale por si próprio, sem qualquer sombra de dúvida, pela coragem demonstrada na madrugada de 25 de Abril – era importantíssima, imprescindível, a presença dos blindados em Lisboa, força sem a qual dificilmente se teria derrubado o Governo e o regime –, pela opção política, mas não politizada, que adoptou no pós-25 de Abril (seria curioso analisar até que ponto esta postura de “consciência”, “polícia” e “guardião” dos “caminhos” da Revolução não se tornaram incómodos não só para os Políticos, mas, também, para os Militares que se deixaram enredar excessivamente pelas malhas dos partidos) e pela imagem patriótica de isenção, distanciamento e verticalidade de que deu provas (dos “alçapões” abertos para cair na política partidária soube esquivar-se com a maturidade de uma consciência tranquila, porque sabe o que quer e não quer).
Na minha opinião são estes três pilares que fazem de Salgueiro Maia a figura simbólica do verdadeiro Capitão de Abril – Cavaleiro sem mácula nem pecado políticos!
Como se justifica o traçado desta personalidade?
Sem querer de forma alguma alongar-me num espaço que só serve para um mero comentário, arrisco-me a, em poucas palavras, aventar uma opinião.
Para além das conhecidas razões que se fizeram sentir sobre os militares como consequência do arrastamento “eternizante” da guerra colonial haveria que destacar a importância da “democratização” do recrutamento do corpo de jovens oficiais das Forças Armadas ocorrido com a reforma da Escola do Exército, em 1959; em vez de se pagar propinas e enxoval para frequentar aquele Estabelecimento, passou-se a receber um pequeno soldo e a ter tudo o mais pago por conta do Estado. Quer dizer, foi invertida a lógica do recrutamento: a par de elites sociais, passaram a frequentar a Academia Militar jovens oriundos de todos os estratos da sociedade, incluindo os dos das áreas próximas do proletariado agrícola e industrial. O estigma de origem não foi apagado pela frequência de três ou quatro anos de curso, pelo contrário, acentuou-se na guerra colonial, ao comandar tropas oriundas dos mais recônditos lugares e grupos sócio-económicos; houve como que um regressar às “origens” para aqueles que provinham do “fundo” da escala social.
Na minha opinião, esta é uma das possíveis justificações para se encontrar entre os “operacionais” do dia 25 de Abril uma significativa mancha de capitães entrados na Academia Militar depois de 1959, com especial ênfase para os anos de 1961 a 1964. Nela estava incluído Salgueiro Maia.
Desculpe-me, meu querido Amigo, o alongamento deste comentário. Um forte abraço
Obrigado, meu Estimado Professor e Amigo, pela homenagem que dedicou neste 33 º aniversário do «25 de Abril» ao meu saudoso camarada de Abril, Salgueiro Maia. Conheci-o bem. Por isso que digo que o retrato que dele faz é exacto.
Salgueiro Maia é o melhor exemplo dos capitães "românticos, generosos e irreverentes" de que fala Maria de Medeiros,o melhor símbolo do herói anónimo e colectivo que foi O Movimento das Forças Armadas em 15 de Abril.
É muito belo o comentário da Guida. Emocionou-me muito. Pois em Salgueiro Maia está a memória mais autêntica dos «capitães de Abril». Uma memória que tem sido objecto, desde há 30 anos, de amnésia ou deturpação deliberadas, com claros objectivos políticos, por parte de quem nunca aceitou que os «capitães» tivessem realizado aquilo que eles bem gostariam de ter feito...mas de que não foram capazes!
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