16 de abril de 2007

QUESTÕES DE ESTILO

Creio ter sido Buffon que um dia escreveu esta sentença definitiva: “O estilo é o Homem”. Todas as fórmulas demasiado taxativas comportam uma margem de indeterminação que as faz vacilar e lhes rouba o sentido concludente, demonstrativo e definitivo. Porém, o dito de Buffon parece corresponder a um axioma. “O estilo é o Homem” remete-nos para uma espécie de impressão digital do espírito, que se nos revela no momento preciso em que avaliamos os textos, procurando através deles sondar as notas caracterizadoras do carácter e das particularidades temperamentais do autor. Lemos as peças de Gil Vicente e ficamos com a certeza de que se tratou de uma personalidade bem disposta, profundamente identificada com os usos, costumes e linguagem da “arraia miúda”, pouco atreita a sofrer as injustiças dos poderosos, dotada de sentido de observação e de capacidade crítica, podendo ter sido até um pouco maliciosa. A poesia de Sá de Miranda dá-nos o retrato de um homem sentencioso, preocupado com a proporção da falar e do dizer, movido fundamentalmente por preocupações éticas, e desiludido, em última análise, com o molde frágil, quebradiço e volúvel da natureza humana. Comparamos o estilo de Alexandre Herculano com o de Almeida Garrett e o que vislumbramos de severidade, de oracular mensagem, de grave ponderação no primeiro, volve-se no segundo em mundanidade elegante, em confessionalidade passional, de amores brincados e efémeros, agora assumidos, logo abandonados, como se o acto de viver comportasse uma margem de aposta e de risco sem a qual se evolaria o próprio sal da vida. A veracidade da afirmação de Buffon mantém-se quando passamos da análise dos estilos literários, mais elaborados, mais calculados, para o estilo das verbalizações ocasionais. Entre o ímpeto de um interlocutor de sanguíneos humores e a vigilância discursiva de um fleumático há todo um abismo a interpor-se. Mas quem fala, expõe-se. E quem cala, não raramente se impõe. A gestão criteriosa da linguagem pode mesmo ser aconselhável ao acto do fascínio amoroso. Um amigo chamava-me há pouco tempo a atenção para o enorme poder atractivo de um rival, com grande sucesso junto do sexo feminino, que tratava tanto da aparência física quanto da omissão do discurso. E desabafava, irado: “Mas se ele não fala, como pode ser alvo de paixão?”. Esse meu amigo desconhecia de todo o poder da imaginação no fenómeno da cristalização amorosa, de que fala Stendhal no seu livro “Do Amor”. Ainda aqui, “o estilo é o homem”, mesmo quando esse estilo, no acto comezinho do viver, se exprime através dos mais sábios silêncios.

1 comentário:

Luís Alves de Fraga disse...

Confirmo, em absoluto a sua (de Buffon) afirmação.

Toda a vida - e já levo 66 anos passados - tenho sido acusado de me expor, porque não me calo. Aliás, raramente me sei calar.
Escrevo muito, falo muito.
Desde jovem optei por ensinar (comecei com as explicações, passei pelas célebres "salas de estudo", por colégios, pelo ensino superior militar e cheguei ao universitário privado) porque, repassar aos outros o pouco que sei, era imperativo.
Expus-me e exponho-me como docente. Tenho, claro, cautelas (filtros mentais que a idade foi apurando) mas, com elas ou sem elas, só pelo simples facto de repassar conhecimento já sou alvo dos olhares e das críticas de quem me ouve ou me lê. Eu ou qualquer um que se ocupa da função docente.

Muitas vezes interrogo-me se tem valido a pena tanta exposição; se não teria sido melhor um prudente silêncio; uma mais egoísta forma de compreender o conhecimento.

Consola-me, e muito, calando-me momentaneamente as dúvidas, um ou outro encontro com velhos alunos que me recordam a - no dizer deles - importância que terei tido nas suas vidas. E os disparates que ficaram pelo caminho?

Será verdade que é sobre a cabeça de todos os que se expõem que a Vida, a mudança, se constrói?

Entre ser amado pelo que mostro de mim ou pelos silêncios que astuciosamente resolvo criar; entre ser amado pelo que se descobre de mim ou pelo que se imagina que sou; entre ser amado com todos os meus defeitos, as minhas clareiras, a minha nudez ou pelos meus mistérios; ah, sem dúvida, opto pelas primeiras!