9 de novembro de 2007

CORPO E ALMA

Acabamos por não pensar muito nisso, é certo. Mas o existencialismo tem razão, quando nos declara que somos uma vida concreta antes de podermos ter a consciência de que também somos uma substância pensante, um cogito, tal como Descartes o quis definir. Foi esse o tal “erro de Descartes”, título de uma obra de António Damásio? Não sei. Quanto a mim, não basta a prova de que um ser humano, com uma cabeça trespassada e com zonas encefálicas lesadas perde por inteiro a consciência moral. É que entendo tão redutora a ideia de um primado da matéria sobre o espírito quanto a tese contrária. Parece-me, isso sim, que as manifestações materiais e as explicitações espirituais ganham invariavelmente, em momentos cruciais, em situações-limite, uma autonomia que nos leva a conhecermo-nos como se fossemos apenas matéria ou apenas espírito, conforme os casos em equação. Nos textos de Albert Camus, os seres humanos perseguem e prosseguem a existência como se a vida fosse um absurdo sem saída, como se as evidências físicas se esgotassem no incaracterístico, qualificação semelhante à das prescrições morais. Ou seja: é mais frequente do que parece que um homem ou uma mulher se enrolem totalmente numa das fracções da sua natureza, dita simbiótica. Um homem propõe-se viver e tem esperanças na escolha – é um espírito em livre golpe de asa e o corpo não é mais do que um acidente secundário. Um homem quer morrer e sente que a perseveração na existência é um absurdo – é um corpo que se afunda nos seus próprios limos, para quem a fenomenologia do espírito não é mais do que o anedotário do nada. Talvez que a maior servidão da antropologia ocidental repouse no princípio da razão suficiente, na aparente força de uma causalidade estrita, que pretende, a todo o custo, manter-nos, em todos os momentos e situações, prisioneiros de uma ficção: a de que temos de ser corpo e alma, em hierarquia conveniente, conforme as chamadas “provas evidentes” da “demonstração científica”.

1 comentário:

Luís Alves de Fraga disse...

Meu Amigo,
Porque depois de ter sido católico sou agnóstico – perdi a fé e não a procurei mais – acho o seu texto de uma extraordinária lucidez.
Alma e espírito serão o mesmo? Será que poderemos separar o que pensamos, o que resulta da nossa lucubração, e a isso chamar trabalho do espírito, daquilo que julgamos existir para além do corpo físico? Será que o pensamento – logo, o espírito – subsiste para além da morte física do corpo? Isso será a alma? Esta será a lembrança que fica entre os vivos daqueles que já foram vivos?
«Este é o meu corpo. Este é o meu sangue. Fazei isto em memória de mim». Será esta a perpetuação da alma, através da memória? Haverá centelha divina no Homem? Onde está ela? Nas acções de cada dia ou nas acções do espírito como manifestação da alma?
Terá sido o medo do esquecimento que levou o Homem à necessidade de imaginar uma alma que o prolonga para além de si mesmo enquanto corpo? O culto dos mortos não será o culto da memória e esta não será a alma? A divindade não será, afinal, uma forma de memória colectiva que “re-liga” as memórias individuais, já extintas, que se perderam na memória dos vivos?
Quantas perguntas lhe poderia deixar que me assaltaram após a leitura do seu precioso texto! Bem-haja, meu Amigo.