8 de dezembro de 2007

O NÚMERO DA BOLA

Na loja do João Vendeiro compravam-se, naquele tempo, rebuçados coloridos. Vinham em caixas oblongas, já a ameaçar ferrugem, embrulhados em papéis baratos. Sabiam a açúcar mascavado e faziam apodrecer os dentes. Mas era neles que vinham enrolados os cromos dos jogadores de futebol, que deviam ser colados numa caderneta a adquirir, como instrumento excedente da colecção a fazer. Era um jogo aliciante e um desafio que durava muitos meses. Quando faltavam cromos mais difíceis, os interessados interrogavam persistentemente outros coleccionadores e propunham-lhes trocas de mútua vantagem. O objectivo não consistia apenas em preencher todos os lugares destinados às vedetas do futebol. Um dos números era dificílimo, dado que dele só existia um solitário e esquivo exemplar. Dava pelo nome do “número da bola”, uma vez que a caderneta completa significava a automática entrega de uma fascinante bola, em couro autêntico, novinha em folha, a fazer negaças de uma das prateleiras da venda do João. O que se estranhava era que o “número da bola” e o prémio previsto contemplassem sempre os rebentos da família do João Vendeiro.
Só hoje me apercebo que aquele episódio menor da minha existência infantil condensava uma parábola de vida. Dou comigo, desde sempre, a tentar completar o meu “puzzle” ; apercebo-me que há graus diferentes de dificuldade, na porfia pela obtenção dos rectângulos coloridos; reparo que este mundo está repleto de Vendeiros pérfidos na sua duplicidade e na sua molúria; acho que o “número da bola” acabará por ser entregue a um qualquer afortunado traste, que nem sequer teve de se esforçar para concluir a sua colecção; e sei que, apesar de tudo isto, continuarei a acalentar no meu peito o desejo de conquistar aquela bola fatídica, ainda agora a contemplar-me de uma das prateleiras da tasca do João Vendeiro.

2 comentários:

Anónimo disse...

Que actual!
Parece que me leu a alma.
Não imagina a quantos nomes próprios eu associaria o apelido Vendeiro.
Estou a lembrar-me de alguns, de mais outros, e mais aqueles... o melhor é não referir nenhum para não 'melindrar' alguém com o esquecimento do seu nome próprio.
Resta a esperança de um dia conseguirmos, primeiro que um qualquer Vendeiro, o 'número da bola'.
Noémia Malva Novais

Luís Alves de Fraga disse...

Caro Amigo,
Será que a minha ausência do seu blog é porque ando com afã exagerado a procurar o “número da bola”? Empenhado em várias tarefas, uma delas, ocupa-me – como sabe – todo o tempo disponível. Acredito que não estou metido num jogo viciado, mas creia que me estou a viciar no jogo, nesta ânsia de me desdobrar, fazendo de conta que ainda vivo os anos da meia-idade.
O seu texto fez-me pensar em quantos Vendeiros terão havido na minha vida. Os que existiram passaram por culpa minha; acreditei que o jogo se jogava com regras de verdade. Raramente se joga. Contudo, ingénuo, sou enganado uma vez e deixo-me enganar muitas mais. Porque o Vendeiro sabe expor, em sítio bem visível, a “bola”, tornando-a apetecível, ou porque vou acreditando que é “desta vez” que o “número da bola” me sai? Ou pelas duas conjugadas?
Não será que todos nós somos sempre tentados a deixarmo-nos ludibriar, porque nos julgamos mais espertos do que o Vendeiro? Ou será por julgarmos que, “desta vez”, o Vendeiro não vai fazer a trapaça do costume?
De engano em engano, de ilusão em ilusão, umas vezes aceito jogar e outras fico só a ver.
Um grande abraço