22 de maio de 2008

A MAQUINETA


Ela não sabia o que devia fazer com o saber que lhe tinham dado. Era como um brinquedo ilógico, cheio de botões e de comandos que não tinham préstimo aparente. Depois, as instruções de manuseio deviam estar todas erradas. Havia um manípulo que dizia “Para Apitar” ; mas quando nele se carregava, aquela maquineta começava a andar. Havia um outro que dizia “Para Amar” ; mas se o premíamos, os dois buracos da máquina, presumivelmente os dois olhos dela, começavam a pingar um líquido salgado, semelhante a lágrimas. Havia também uma manivela com uma etiqueta onde se lia “Não carregues aqui”. Era a primeira peça onde toda a gente carregava. E quando isso acontecia, vinha de dentro das roldanas e das rodas de entalhe uma voz sumida, que fazia ouvir esta frase: “Acabas de amaldiçoar o criador da máquina”. Ela não sabia mesmo como haveria de lidar com aquilo. Porém, a compra demonstrara que se tratava de um brinquedo caro, muito lustroso, cobiçado por todos os outros objectos do bazar. E se carregasse em todos os botões, manivelas, campainhas e teclas? Foi o que fez. Mas nada, rigorosamente nada aconteceu. Olhou novamente as instruções, muito decepcionada, quase em estado de raiva. Dobrou-as cuidadosamente, vincando-lhes os bordos, alisando-lhes as nervuras, sobrepondo-lhes os cantos. Lera algures o depoimento de um tal poeta genial e sofredor que um dia teria dito que até na destruição a ordem se tornava necessária. Por isso se dava com toda a aplicação àquela tarefa de dobrar, redobrar e reduzir a folhinhas sobrepostas as folhas maiores do manual de instruções. Feito isto – ao contrário daquele tal poeta de uma ilha de bruma, que havia guilhotinado e lançado à rua uma boa parte da sua obra -, feito isto ela acendeu uma grande fogueira e queimou, cantando, a resma das inúteis instruções. A partir de então, a maquineta passou a funcionar muito melhor.

1 comentário:

Luís Alves de Fraga disse...

Excelente alegoria!
Há, realmente, maquinetas que funcionam melhor quando usadas com o jeito da intuição do que com livros de instruções!
Deixe-se que cada qual faça a seu modo, porque sai mais correcto do que de acordo com as indicações do criador.
Os meus parabéns, meu caro Amigo