12 de outubro de 2008

CARNAVAL, OPUS 9, DE SCHUMANN

Um dia, descobri numa velha mala, desde há muito lançada para o desvão de um sótão poeirento, o seguinte manuscrito, incompleto e truncado, quer por lhe faltarem páginas, quer porque a humidade do local o tornara, em certas passagens, ilegível:

 Sim, é verdade, eu odeio-o. Há nele um não sei quê de superioridade que me irrita e desconcerta. Ontem mesmo aproveitou a oportunidade de estarmos sós e perguntou-me: «Conheces o Carnaval, Opus 9, de Schumann?». Forte asno! Como se fosse só ele a gostar de música clássica. Senti-me tão vexada que lhe virei as costas, não sem que antes dissesse para os meus botões – Qualquer dia, pagas-mas todas juntas! Claro que é absolutamente necessário (ilegível a partir daqui)”.

 Texto de uma outra página:

 “ […]  se te apetecer. Sofre muito. Já nem canta pela manhã. E eu estava muito habituada a esse acordar. Sabes que o bicho se me afeiçoou deveras. Não admira, criei-o desde muito novo, era quase um pássaro implume. E habituei-o a vir mordiscar-me o dedo, para pedir comida. Mais tarde, já o podia levar comigo para o banho e ele ficava empoleirado no (grande mancha de humidade, alastrada por várias páginas, impedindo a leitura)”

 Imagina que decidi ir ouvir o Carnaval, de Schumann. Um horror! Não sei como se pode gostar daquilo. E na festa da mamã lá estava ele, cheio de prosápia, rodeado de discípulos meios embasbacados. Passou por mim, quase sem reparar que eu existo e limitou-se a dizer «Olá, está com bom parecer.». Senti vontade de o esbofetear.”

 Mais à frente:

 “ […] Lembro-me como se fosse hoje. Trilhou a pata no bordo da gaiola e, espantado com um gesto que fiz por inadvertência, partiu-a, sem que eu me tivesse dado conta disso. Depois foi o declínio. As minhas leituras deixaram de ser acompanhadas […] e cabeceia muito, talvez por causa da febre. […] isto porque, se a intenção dele é desqualificar-me perante toda a gente, interpelando-me acerca de pintores ou literatos de meia tigela, que ninguém conhece nem quer conhecer, cá estou eu, para lhe fazer a cama sem que disso se aperceba. Infame! Já tenho o meu plano bem meditado e não irei falhar. Assim, […] e depois de […] atraio-o ao meu quarto e acuso-o de atentado ao pudor, em altos berros. O Papá anda com medo dos ladrões e tem um revólver na mesinha de cabeceira. Se eu o segurar bem e não deixar que mostre o rosto, virando-se, o Papá dispara de […] verdadeira dor de alma. Acredita que eu gosto dele, mas irá custar-me muito […] já mal se mexe […]

 Noutra página:

 “ […] pois, como sabes, morreu. Não me culpo de nada. De certa maneira, agora estou muito mais em paz. Ouvi outra vez o Carnaval, Opus 9, de Schumann, e começo a gostar daquilo.”

 O manuscrito não vinha assinado. Apesar disso, decidi comunicar o caso à Polícia e à Sociedade Ornitológica. 

3 comentários:

Anónimo disse...

A POESIA DAS COISAS

Para um homem de estudo concentrado
em aturadas investigações
e sábio professor preocupado
em debitar doutíssimas lições,

estou profundamente surpreendido
com sua faculdade excepcional
de às simples coisas que não têm sentido
dar uma espécie de alma pessoal.

Faltava apenas este tão bonito
imaginado texto manuscrito
achado no desvão da sua casa!

Como um autêntico escritor de raça
Vossa Excelência, com um toque de asa,
todo me encheu de poesia e graça!

João de Castro Nunes

Luís Alves de Fraga disse...

Ocorre-me dizer que a juntar à inteligência do texto há um finíssimo sentido de humor, justificando o sorriso que pontua a leitura no seu termo.
Permita-me, meu Caro Amigo e Professor, um abraço de parabéns.

Anónimo disse...

REMATE DE VERÓNICA

(Outra versão)

Para um homem de estudo concentrado
em aturadas investigações
e sábio professor preocupado
em debitar doutíssimas lições,

estou profundamente surpreendido
com sua faculdade excepcional
de a qualquer coisa sem nenhum sentido
dar uma espécie de alma natural.

Achei montes de graça a
este bonito
imaginário texto manuscrito
achado no desvão da sua casa.

Como um soberbo matador de raça, Vossa Excelência, com um toque de asa
fez-se aplaudir em pé por toda a praça!

João de Castro Nunes