23 de outubro de 2008

DORIAN GRAY REVISITADO

Óscar Wilde escreveu um dia uma parábola imorredoira: a do Retrato de Dorian Gray. O protagonista era um dândi cúpido, exibicionista e dúplice, talvez um pouco à maneira do próprio Wilde. Por isso, ia vogando, aparentemente incólume, por entre os rumores da agitação social e os brilhos dos salões mundanos. A sua aparência, cuidada, quase perfeita, servia de salvo-conduto para a obtenção das chaves do sucesso, que lentamente o elevavam às culminâncias da sua ambição. E no entanto … E no entanto, à boa maneira da denúncia romântica, Dorian Gray apercebe-se que aloja no seu próprio domicílio o instrumento denunciador da sua verdade mais íntima. Um espelho, um simples e inocente espelho, irá registar-lhe em cada dia a progressão dos vícios, a devastação das concessões malévolas, a aliança com o lodo mais infamante dos infames do seu tempo.

Dizem os estudiosos do corpo humano que este se degrada implacavelmente porque a usura do tempo  lhe mina a robustez material e o viço orgânico. Hoje claudica um pouco mais o sistema respiratório, amanhã o digestivo, depois o circulatório, finalmente tudo junto, até ao colapso final. O que ainda ninguém pôde ou quis estudar, com assumida intenção reformadora, foi o desgaste inexorável da Alma (seja lá isso o que fôr para padres ou laicos) com a decadência irreversível daquela matriz de original inocência e bondade que talvez um dia tenhamos exibido no nosso rosto, adormecido e suave, de crianças. Cedemos hoje num princípio, amanhã num juramento, depois num compromisso, agora num valor fundamental, logo num pilar de carácter, até entregarmos toda a nossa integridade ao primeiro proxeneta que entenda explorar o nosso corpo moral. No entanto, talvez guardemos, em local discreto e privadíssimo da nossa própria casa, o impassível espelho dos Dorian Gray em que nos vamos transformando, mostrando-nos em cada hora a distorção monstruosa da nossa abdicação. 

Talvez aí resida a última esperança de um resgate improvável. Mas quem quer ver? Quem? 

 

2 comentários:

Anónimo disse...

NEM SEMPRE

Aos poucos vai-se a vida degradando
do ser humano em cada ano que passa:
hoje um ouvido que se vai tapando,
uma vista amanhã que fica baça.

Não é preciso, para o constatar,
espelho algum, pois é mais que evidente
esta situação... peculiar
de cada criatura, toda a gente.

Só que nem sempre a alma se degrada
de braço dado, ou seja, de mão dada
com nossa corporal decrepitude.

Há quem chegue à velhice com saúde
anímica e moral, à semelhança
do que se passa com qualquer criança!

João de Castro Nunes

Anónimo disse...

CORPOS E ALMAS

Quando do ser humano se degrada
o corpo pela falta de saúde,
não há coisa nenhuma, não há nada
capaz de devolver-lhe a juventude.

De degrau em degrau desce a escada
que por levá-lo acaba ao ataúde
sem que lhe valha, nesta caminhada,
a prática contínua da virtude.

O mesmo com a alma não sucede,
porquanto, mesmo quando retrocede,
pode voltar ao ponto de partida.

Em presumível regeneração,
graçasa Deus, está na sua mão
recuperar a limpidez perdida!

João de Castro Nunes