8 de outubro de 2008

A VISITA DE HERACLITO

Creio ter sido Heraclito, o filósofo da permanência e da mudança, que disse que o caminho a subir e a descer era o mesmo. Lembrei-me dele a propósito do imperativo ético. 

A tradição judeo-cristã firma o dever-ser no altruísmo, no serviço para com os outros, ou seja, nas diversas manifestações da filantropia. Isto produz em certas consciências – que alguns apelidarão de burguesas (TGV do marxismo) ou de pequeno-burguesas (via reduzida do neo-marxismo) – um singular complexo de culpa, sempre que as manifestações do egoísmo se impõem às generosidades do viver para os outros. Aliás, o cristianismo e o judaísmo são, visceralmente, “religiões da culpa”. Imputam ao pecado a decadência do Homem, não se chegando muito bem a perceber se esse pecado derivou da fornicação ou do acto de desobediência para com a Divindade. 

Seja como for, a verdade é que estas religiões pariram uma multidão de crentes timoratos, sempre dispostos a interiorizar, sob a forma da culpa, todos os desvios, reais ou supostos, que os teóricos lhes foram imputando. Lembro-me que tive amigos de infância, nascidos no seio de famílias com orçamentos médios, que, após umas leituras apressadas do “Manifesto Comunista”, escondiam envergonhadamente o seu “estatuto de classe” e diziam barbaridades como esta: “O meu pai é engenheiro mas é de esquerda” !!! Era uma miséria verbal muito próxima desta outra forma de cretinice: “A minha tia é beata mas fuma”. 

O complexo de culpa de que padeceu toda a minha geração gerou duas perversões: a dos que foram compelidos a “adorar” as ideologias de esquerda como exorcismo de um pretenso pecado social de origem e a dos que aplaudiram o Estado Novo e se fizeram fascistas, como resposta reflexa a esta forma larvar de chantagem. Dou-me a pensar, hoje, que muito outros teriam sido os caminhos da minha geração se esta tivesse sabido manejar o egoísmo como forma de reivindicação social. É que, a auto-defesa do indivíduo – quando tal individualismo não entra em vertigens doentias – supõe e implica que as reclamações dirigidas aos governos acabem por desaguar em lógicas de Bem Comum. Explico melhor: parto do meu egoísmo e do complexo das minhas necessidades e reclamo escolas públicas competentes (porque me ficam mais baratas), hospitais públicos eficazes e bem equipados (porque preciso deles para tratar as minhas doenças), casas com rendas acessíveis (porque quero instalar os meus filhos recém-casados), crédito não especulativo (porque necessito de ampliar o meu negócio) etc, etc. 

Foi por isso que o enigmático Heraclito me veio visitar. Com efeito, é efectivamente o mesmo o caminho a subir ou a descer. Necessário é que não me venham impingir balelas tolas ou açular culpas imaginárias. Por um lado, porque já sou crescidinho; e, por outro, porque já não estou com pachorra para ouvir o Conselheiro Acácio. 

2 comentários:

Luís Alves de Fraga disse...

Meu Caro Amigo e Mestre,
Como sempre, brilhante nos raciocínios!
Excelente interpretação do “egoísmo” se olhado na vertente animadora da exigência política. Mas, de facto, quem nasceu e cresceu regulado e pautado pela fórmula fascistóide «Tudo pela Nação, nada contra a Nação» tem de sentir que a reivindicação individual, para além de ser um pecado à luz da religião Católica, era um atentado à concepção doutrinal de estar numa sociedade que se regia, também, pela verdade triangular de «Deus, Pátria e Família». É que, se do lado fascista se reclamava o silêncio do ego em nome do colectivo, do lado marxista impunha-se doutrinalmente este silêncio, invocando o bem-estar da classe operária e a continuidade da revolução.
Conclusão: as gerações de homens e mulheres portuguesas com sessenta e setenta anos de idade foram sacrificadas, porque nunca, em consciência e em liberdade, puderam reivindicar o direito individual, pois o colectivo sempre os tentou afogar.

Anónimo disse...

REALIDADE E SENTIMENTO


À perspicácia do Prof. A. Carvalho Homem


Ainda que subir ladeira acima
seja por natureza mais custoso
do que descê-la, ou seja, mais gravoso,
pois para baixo cada santo anima,

o certo é que, de todas as maneiras,
segundo autorizado parecer,
tanto seja a subir como a descer,
é sempre igual o piso das ladeiras.

Não vale a pena, pois, torcer os factos
para, iludindo o próximo, intentar
em vão justificar os nossos actos.

Por mais que as pretendamos alterar,
as coisas que nos surgem pela frente
são como são, não como a gente as sente!

João de Castro Nunes