Quando o último raio de sol se despediu da Ágora de Atenas ainda por lá ficou Zeuxis, o pintor, medindo a praça, para cá e para lá, com passadas nervosas. Uma donzela passou por ele e sorriu. Um inimigo cruzou-se com os seus passos e invectivou-o. Um escravo dirigiu-lhe uma furtiva mesura. Mas Zeuxis não colheu o perfume do sorriso feminino, nem repeliu o furor da invectiva, nem correspondeu à mesureira homenagem. Mergulhara no mais fundo de si para tentar resolver o mais espinhoso dos problemas: como representar a Beleza?
Zeuxis sonhara fixar para sempre a perfeição de Helena, aquela que justificara, só por si, uma cruenta guerra, aquela mesma mulher que Homero, rendido, havia considerado incomparável. Como se poderia então representar o único, o sem par, o Belo absoluto? E Zeuxis estugava cada vez mais as suas passadas, como se perseguisse uma solução esquiva, um enigma pitagórico, uma cifra misteriosa da Pítia de Delfos. Quem o vira nesse febril vai-vem, batendo as areias rangentes sob o compasso das suas sandálias, também o viu estacar de chofre, erguer ao céu os braços e gritar: - É isso, é isso, tenho de seguir já para Crotona.
Foram muitos os sóis que banharam a Ágora de Atenas sem que nela se voltasse a encontrar o rasto de Zeuxis, o pintor. Mas certo dia – dia de rosas em botão e de vivíssima luz – a praça encheu-se de rumores e glórias. A donzela correu a casa e disse à mãe-matrona que era imperioso que se deslocassem a casa de Zeuxis, para que pudessem contemplar, ao menos uma vez, a maravilhosa pintura que ele trouxera de Crotona. O inimigo confidenciou a amigos seus que haveria de ir ao domicílio de Zeuxis para o desmascarar, provando que a obra chegada de Crotona era da autoria de Parrásio, o émulo pintor. O escravo murmurou a um liberto que haveria de suplicar a Zeuxis a mercê de mirar Helena, pois assim encontraria forças para continuar a viver.
Zeuxis estivera, de facto, em Crotona. Corria a fama de que aí se acolhiam as mais formosas mulheres da terra. E as mais belas das belas foram as escolhidas para servirem a Zeuxis de modelos. Retirou de uma o fulgor do olhar, de outra o sedoso dos cabelos, desta o equilíbrio da fisionomia, daquela a elegância do porte, daqui o redondo dos seios, dali o arco da cintura. Nasceu Helena como obra sem par da síntese de particularidades sem par. E como depois do amor todo a animal fica triste, houve até quem dissesse que Zeuxis teria chorado quando chegou ao fim da sua pintura.
Passado algum tempo, Zeuxis voltou a passear na Ágora. Recebeu novamente o sorriso da donzela e a mesura do escravo. Mas o inimigo dirigiu-se-lhe, interpelando-o com a ira no rosto e a peçonha nas palavras: - Zeuxis, ouve bem o que eu te digo. Só me convencerás do teu génio quando lograres pintar tão bem o Feio como, segundo dizem, pintaste o Belo.
Muitas foram as luas que correram o céu da Ágora sem que ninguém tivesse voltado a ver Zeuxis. Recolhido ao lar, o pintor produziu febrilmente a megera mais escalavrada, mais repelente e hedionda que alguma vez pôde ser representada em todo o historial da arte. Todos esperavam agora que o inimigo se curvasse ao seu talento. Todos aguardavam que Zeuxis transportasse para o meio da Ágora a prova do seu triunfo, agora definitivo, sem contradita. Mas Zeuxis não se resolvia a sair de casa e permanecia em sombria contemplação ante o seu horrível e talentoso trabalho. Alguns o viram a chorar muito. Dias depois, o escravo bateu-lhe à porta e disse-lhe num sussurro: - Senhor, está tudo à tua espera na Ágora, para que possas ser aclamado, como mereces. Senhor, onde está o teu trabalho? E Zeuxis respondeu: - Já não existe. Aniquilei aquela velha ignóbil. O escravo fitou-o com a maior perplexidade : - Senhor, que razões te levaram a fazer tal coisa? E Zeuxis disse-lhe o seguinte, com voz cansada: - Era necessário que o fizesse. O Belo de Helena foi retirado da beleza de todas as mulheres de Crotona que me serviram de modelos e é um hino a essas dádivas bondosas. Chorei de alegria quando pintei Helena porque ela representava não apenas o Belo, mas também o Bom e o Justo. Estas coisas nunca poderiam ser encontradas numa só mulher, mas em várias. Mas vê tu, escravo, que para pintar o Feio eu não tive de o procurar em parte alguma. Retirei-o todo de mim. Não tive de ir a Crotona. Encontrei-o na minha própria casa. Foi então que chorei de lástima por mim mesmo, de mágoa por ter cedido ao desafio de um inimigo perverso. Não pude consentir em ter comigo, todos os dias, a prova da minha fraqueza. Por isso destrui pelas minhas próprias mãos essa obra impura.
A Ágora de Atenas guardou por muito tempo a memória deste episódio, até ser destruída pela voragem do implacável Tempo. Zeuxis, porém, ainda vive: no fulgor dos olhares, no sedoso dos cabelos, no equilíbrio das fisionomias, na elegância dos portes, no redondo dos seios e no arco das cinturas do Ideal feminino.
2 comentários:
ZÊUXIS: BELEZA E FEALDADE
Não existindo numa só mulher
a perfeição de Helena, Zêuxis teve
a ideia genial, como se escreve,
de a várias ir buscar o que há mister:
os olhos de uma; de outra, o seu cabelo;
os seios desta; daqueloutra, a perna...
e assim refez, para ficar eterna,
a bela Helena, arquétipo e modelo.
"Não me convence!" - disse alguém no meio -
se ele não for capaz, do mesmo jeito,
de forma dar a quanto há de mais feio!"
"Nada mais simples! - retorquiu o artista -
Basta que cada qual dirija a vista
para a alma que traz... dentro do peito!"
João de Castro Nunes
SORRISO PARTILHADO
(Sob a inspiração de Zêuxis)
Sorriso assim não creio que existisse
no original, ou seja, no modelo;
nunca se viu ninguém que assim sorrisse,
sinceramente há que reconhecê-lo.
Em rosto algum de uma única mulher,
seja quem seja a dama da pintura,
se viu sorriso idêntico sequer
ao da famigerada criatura.
Para a obra final que tinha em mente,
terá seleccionado o seu autor
de cada florentina... um pormenor.
E terá siso assim, no meu juízo,
que veio à luz do dia esse sorriso
numa única pessoa... inexistente!
João de Castro Nunes
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