-- Lembro-me, sim, lembro-me. Era uma jovem arruivada, muito de bem consigo e com a vida, uma filha-de-família, está bom de ver. Chegou a casar com o Marcelo? Esse dado biográfico não me escapa. Já te conto. Sei que era requestada pelo Marcelo, esse tal que andava sempre com um emblema na lapela que se assemelhava grosseiramente com a efígie de Lenine, mas que gostava sobretudo de ceias opíparas. Era uma estampa, tal pedaço de mulher … Usava os cabelos apanhados e , em pleno café-restaurante “ Mandarim” , mesmo nas barbas dos “pides”, passeava-lhes nas ventas os livros de Luckacs, Gorki, Althusser, sei lá eu que mais de herético. E os gajos, pesados como a roda da mó, olhando-lhe as redondezas dos seios e o torneado das pernas , oh meu amigo, queriam eles lá saber da luta de classes, da fascismo, do comunismo, do Lenine e do materialismo dialéctico, até mesmo do ressono pesado do Salazar!
O Marcelo era o candidato mais viável, sim. Mas lembra-se do Sampaio? O Sampaio não frequentava, em regra, o “Mandarim”. Era um rapaz reservado, magro, quase ascético. Andava sempre de capa e batina. Ia às nove e meia em ponto para a Praça da República, fazendo “piscinas” de um lado para o outro, só para a ver passar. Adorava-a de longe, como se ela não fosse uma colega como as demais, mas uma “madonna” da Renascença. Ao Sampaio não se lhe conhecia preferência política, embora se soubesse que o pai era secretário de Finanças numa vilória do interior e a mãe não tivesse outro camarote de distinção para além do que lhe estava reservado pela condição de doméstica. O Marcelo nem sonhava que o Sampaio lhe disputava discretamente a presa. Por isso, apesar de passar rés-vez pelo Sampaio nos serões primaveris da Praça da República, nem lhe passava pela cabeça provocá-lo. Era como se bordejasse uma vinha já vindimada. Entrava no café-restaurante, como um César triunfador, e ia postar-se numa posição estratégica, a partir da qual a pudesse deslumbrar. Às tantas, a partir do oitavo copo de cerveja, o Marcelo subia para cima da cadeira, espantando toda a gente, e orando assim, “urbi et orbi” : “ Eu quero aqui assinalar todos os centenários que a Ilustre e Sábia Academia de Coimbra venera e celebra: o centenário da Sebenta, o tricentenário de Camões, o centenário do Marquês de Pombal” – e acrescentava, virado para a mesa dos “pides” – “tão do agrado daqueles senhores; o centenário do Hilário, e também o centenário de todos os corações amigos e amantes da Beleza” . Esta última arrancada era posta em destaque com um olhar intencional, dirigido para a tranquila mesa onde se encontrava , a saborear um “pingado”, de companhia com outros, uma jovem de cabelo cor de cobre, apanhado em tótó, como o das velhas da Beira.
Nesse dia, o Sampaio seguira a estátua da sua adoração e ficara de pé, reservado, pensativo, muito só, num ângulo do café, com o copo da água sem gás consumido à metade. Atentíssimo, também. Quando o Marcelo concluiu a diatribe, o Sampaio, muito calmo, dirigiu-se à mesa do colega depoente e disse : - Senhores meus colegas, este Marcelo é uma burla monumental; ele é tão comunista como eu sou Rei da Abissínia. Está morto por ser preso por aqueles funcionários da “pide”, transigirá até com a vergonha de apanhar uns tabefes, para ganhar o estatuto que lhe permita transitar, como um Deus, pelas cuecas de todas as colegas que lhe interessam. E eu sei quem lhe interessa sobremaneira”.
Segiu-se o pandemónio. O Marcelo atirou-se ao Sampaio como os cristãos se aplicaram a dar murraças nos mouros. Os da “pide”, completamente ultrapassados pelos acontecimentos, só tartamudeavam “mas que é isto? mas que é isto? Ordem! haja Ordem, senão vai tudo preso”. O Talina, empregado de mesa, metido num casaco largo e impecavelmente branco, repetia, como um fonógrafo estragado, “isto nem parece dos senhores doutores, dos senhores doutores”. E a causa eficiente da balbúrdia, a jovem bela e leitora, pagou ao Hugo - também ele fun cionário do “Mandarim” - a despesa da mesa e saiu a sorrir, imperturbável, mas não sem que antes, ao cruzar-se com o Sampaio, lhe tivesse murmurado baixinho : “Não esteve mal. Mas, sabe, há cuecas e cuecas…”.
Eu ouvi toda esta evocação, procurando exumar, dos arcanos da memória, o Sampaio, os “pides”, o Marcelo, o Talina, o Hugo e “tutti-quanti”. Depois, dirigi ao meu amigo a pergunta óbvia: -- Olha lá, com quem é que ficou a pequena? E fiquei varado, quando ele me respondeu: -- Ora essa, comigo. Comigo! Pois se era eu que nesse dia estava na mesa com ela… Tinha vindo de Abrantes para a rever. Amiga de escola, sabes? Eu dediquei-me ao negócio do turismo e abri um hotel de vinte quartos nos arredores de Tomar. Casei com ela logo a seguir à formatura em Geografia, por ela tirada em Coimbra. Achei piada, porque o Marcelo foi nosso cliente do hotel, onde pernoitou há uns meses . E foi ela que o atendeu no balcão da portaria. Nem sequer se conheceram. Tive de ser eu a refrescar-lhe a memória, perante o nome, depois do tipo ter desandado. Mas o que me deu mais gozo foi o facto do Marcelo trazer na lapela , muito visível e embandeirado, o emblema do PSD. Típico, não ?
-- E o Sampaio? – perguntei.
-- Desse nunca mais ouvi falar. Já deve ter morrido.
3 comentários:
Encontros, desencontros, paixonetas,
que ao longo da existência vão passando,
quem os não tem, para de quando em quando
os relembrar no fundo das gavetas?!
JCN
Numa arca antiga, revestida a couro,
fechada a cadeado de segredo,
guardo, como se fosse o meu tesouro,
minhas lembranças íntimas com medo
que alguém sem pejo as queira esquadrinhar
para no fundo da minha alma entrar!
JCN
Se Coimbra falasse a meu respeito,
quantas coisas teria que contar,
como aliás ainda estou sujeito
depois de ser levado a sepultar!
JCN
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