13 de janeiro de 2012

FENG-KAN E O TIGRE




Feng-Kan era um rubicundo patriarca que vivia na companhia de um enorme tigre domesticado. Nos jardins orientais tudo parecia obedecer às leis da levitação. Por isso, estranhamente, sendo Feng-Kan um obeso patriarca, cujas alentadas formas se recolhiam sob vestes vermelhas e redondas, o seu corpo parecia pairar por entre canteiros de flores aromáticas.
A história da domesticação do tigre ficará na memória de todos os vindouros. A província fora literalmente devastada pelas incursões de um felino terrível. Diziam uns que se tratava de um espírito maligno, de cenho sinistro e de ferocidade sem quartel. Declaravam outros que a razia não era produzida por um bicho mas por uma alma tresnoitada que, privada de amor, traduzira em fúria a própria solidão. Fosse como fosse, quando as piores narrativas chegaram aos ouvidos de Feng-Kan, ele limitara-se a encolher os ombros e a obtemperar, com oriental acomodação: “a morte não existe; o que há são eflúvios”. Naquela altura, ninguém o entendera. E até mesmo os sábios “zen”, reunidos em assembleia para interpretar o oráculo de Feng-Kan, não conseguiram mais do que longas arengas, onde aqui se semeava um tropo e mais além uma inverificada premonição.
Feng- Kan orgulhava-se de se deitar com as primícias das sombras e de se levantar com as últimas fugas dos sombreados em vigília. Os preparativos da sua higiene, no início do dia, obedeciam a uma liturgia complicada de gestos repetitivos e de solenes rituais. Ainda antes de beberricar o seu vagaroso chá, Feng-Kan descia sempre ao jardim, ficando por longos minutos a contemplar os desenhos que o aljôfar da morrinha traçava, de combinação com as primeiras luminosidades, nas folhas envernizadas de certas plantas. Entre o domicílio de Feng-Kan e o seu jardim interpunha-se um regato e uma pequena ponte elegante, suficientemente larga para proporcionar passagem ao nédio corpo do sábio, mas não tão generosa que lhe consentisse o trânsito sem que as pontas do manto raspassem ao de leve os muros laterais. Naquele dia, Feng-Kan acordara com um singular pendor contemplativo. Antecipou o gozo que iria colher desse comércio iniciático com as flores de lótus e o coaxar das rãs. Porém, transposta a pontezinha, Feng-Kan admirou-se com o profundo silêncio de todo o lugar. Não soprava o vento, do nascente jorrava a primeira cachoeira de branda luminosidade e nem um só animal levantava saudações de gratidão a mais um ciclo da quotidiana existência. Feng-Kan parou, perplexo, confuso, a meio do seu jardim. Teriam passado breves instantes quando se deu conta da agitação do restolho de uma cerca de bambus que fizera colocar numa vala de delimitação, para além da ponte. Feng-Kan vislumbrou então o avanço de um animal opulentíssimo, cruzando com célere elegância os poucos de metros que distavam do seu poiso, mesmo a meio da fonte principal do jardim. Era um tigre, imenso e fero, que se lhe dirigia sem a menor atrição. Feng-Kan teve desde logo a certeza de se encontrar perante a temível Besta que devastara choupanas, esventrara caçadores e semeara o pânico por todo a região provincial. Voltou a dizer baixinho, de si para si, o que havia sido o enigma irresolúvel dos sábios “zen” : “A morte não existe; o que há são eflúvios”. O animal ia revelando toda a sua potência na gula com que fitava a rotunda barriga de Feng-Kan, logo ali antecipada como pasto iminente de voracidade esfomeada. Então, Feng-Kan levantou a sua mão direita, com a palma voltada para os primeiros raios de sol, e declarou: “Oh tu, Fera, oh tu, Besta, fita-me nos olhos e vê os eflúvios da minha alma”. O portentoso tigre arqueou a tigrina cabeça e os seus olhos muito amarelos pousaram-se durante longos minutos, nos olhos escancarados de Feng-Kan.
Os sábios “zen” ainda hoje discutem o milagre daquele entendimento. A verdade é que Feng-Kan passou a coabitar, desde esse dia, com essa fera colossal, que lhe vinha comer à mão, lhe ronronava aos ouvidos para o despertar e lhe corroborara a superioridade dos eflúvios sobre o veredicto inapelável da finitude.

2 comentários:

João de Castro Nunes disse...

Quem pudera, Professor,
como o sábio barrigudo,
às nossas feras opor
um metafórico escudo!

JCN

João de Castro Nunes disse...

Por trás de uma alegoria
muita verdade se esconde:
vá-se lá descobrir onde
se oculta a sabedoria!

JCN