28 de janeiro de 2007

ANTERO E A ESPERANÇA

Regresso ao muro das Clarissas da Esperança, em Ponta Delgada, com a mágoa do suicídio de Antero, que me guiou os passos e me orientou o olhar. Para lá do muro encontra-se, dramático e sangrento, o Senhor Santo Cristo dos Milagres. Aquém do muro, omnipresente na sua ausência, encontra-se o lugar fatídico do “Santo Antero” de Eça de Queirós. O céu está baixo, cinzento, e sopra do levante um vento-zum-zum que agarra as folhas dos começos do Inverno e as leva, em turbilhão, pelo ar. Nunca percorro Ponta Delgada sem que os meus passos me levem, quase sem dar por isso, àquela praça quadrangular, ladeada de casario uniforme e de templos decorados a pedra vulcânica. Desta vez não fui ver o busto de Teófilo Braga, esse velho orgulhoso, esse obstinado titã das letras, depreciador do buril estilístico, com o qual aprendi a dignidade dos intransigentes e a altaneira postura dos que não sabem capitular. Desta vez, mais uma vez, foi o mistério de Antero que me empurrou, como sempre, para aquele banco elementar, que lhe recebeu os despojos de uma infelicidade cruciante, insuportável, punitiva, lancinante. Parece que o atormentado Filósofo, o Magno Poeta das Dores Morais, teria sido interpelado, nesse seu último retorno à ilha, por uma Senhora, que lhe teria perguntado se estava bem, se estava contente, se estava feliz. E dizem os antigos cronistas que Antero teria respondido, de dentro do seu atoleiro de decepções: __ Estou mal, minha Senhora, estou muito mal. A Felicidade, minha Senhora, a Felicidade não é para mim … Vejo-o, depois, a arrumar num bolso a pistola. Imagino-o a vaguear pelas vielas micaelenses, absorto, fitando sem olhar os que com ele se cruzaram, ignorando o piar das gaivotas, o marulhar da maresia, até talvez o tropel das beatas, em carreiras cerradas à procura da devoção do Senhor Santo Cristo dos Milagres. Chegou, enfim, à quadrada praça do seu ajuste de contas. Um vazio dentro da alma, uns olhos azuis turvados de emoções doentes, um ranger de cordames íntimos , sem vela para cingir. Naquela praça, sempre houve vários bancos geometricamente distribuídos. Um deles, quase encostado ao muro do Convento da Esperança, num dos ângulos da quadratura, parece apostado em interromper, também ele, a uniformidade da superfície da parede. Quem nesse banco queira repousar (ou relembrar …) virará as costas a uma figuração, em forma de âncora, sob a qual se escreveu a palavra ESPERANÇA. Vejo o vulto de Antero deambular pelo quadrado do seu xadrez fatal, acariciando, em gesto mecânico, espasmódico, a arma do seu desespero. Desespero? Quem o garantirá? Dentro do muro, o Senhor Santo Cristo dos Milagres, dramático e sangrento, vive paredes-meias com o “Santo Antero” de Queirós. Mas este ficou do lado de fora. O seu último gesto, antes do disparo, foi, sem margem de dúvida, o de se sentar naquele banco (e não noutro), apenas existente naquela praça quadrangular (e não noutra), onde algum desígnio desconhecido ou menos conhecido, humano ou divino, havia tracejado uma âncora e escrito em baixo a palavra ESPERANÇA. Ventosa estava Ponta Delgada quando aí cheguei; deixei-a ventosa e fria no momento da partida.

1 comentário:

Luís Alves de Fraga disse...

A minha vida tem estado um inferno de trabalho! Venho lendo, de corrida, as suas postagens, que me deleitam instantaneamente, por não ter tempo para sobre elas me debruçar com a liberdade que o quase ócio nos oferece.
Arranjei hoje um bocadinho e, por isso, aqui deixo um breve comentário.
Do relato da morte de Antero - uma morte por ele escolhida e dificilmente conseguida, por longa ter sido a agonia - ficou-me sempre uma dúvida: - O que nos quis ele testemunhar, ao escolher aquele banco, sob a égide da Esperança, frente à igreja do Senhor Santo Cristo dos Milagres?
Que Esperança se guardava naquele coração que quis parar de bater? Que milagre se esperava naquela mente laboriosa?
Não pode ter sido o acaso que o levou àquele banco, àquele local tão específico.
Aquele corpo sofrido pelos padecimentos que o atormentavam e aquele espírito, deambulando de conjectura em conjectura, de dúvida em dúvida, de incerteza em incerteza, não foram conduzidos àquele largo por um impulso despejado de sentido. Não, não é possível!
Terá o suicida querido deixar explicito que não há esperança nos milagres? Que a solução taumatúrgica não passa de um equívoco para enganar o povo ignaro?
Terá, pelo contrário, ter querido ver abrir-se-lhe as portas de um Céu miraculoso, ao apoiar-se na Esperança, quando a bala lhe trespassasse o cérebro?
O Antero que acusou a Igreja Católica de ter sido a causa da decadência peninsular terá sido o mesmo Antero que escolheu aquele banco com aquela "geografia" tão peculiar?
Se para lá da morte tudo parece ser insondável, também me quer parecer que insondável é a mensagem de Antero, na antecâmara da sua própria morte.
Terei alguma ponta de razão ou a minha dúvida resulta, afinal, de mera ignorância?