Houve um tempo em que o Tempo corria mais devagar, como um fio de água tranquilo que se espreguiça numa planura displicente. Houve um tempo em que a palavra era proferida por velhos sábios, sob a campânula de árvores copadas, numa espécie de conciliábulos sem fim. A própria conversa era frequentemente um objecto sem objectivo, como se cada frase brincasse consigo mesma, sem se querer abandonar à sorte de outras frases semelhantes. Houve um tempo em que cada um escutava sobretudo o silêncio de si próprio, como se a condição natural do diálogo não fosse mais do que um cruzamento de solilóquios. Os contos que então se contavam possuíam uma exemplaridade que tinha a força das parábolas ou das máximas nascidas de uma experiência colectiva tão antiga como o próprio mundo. Não sei bem, mas talvez tivesse sido esse o tempo dos nossos pais, cheios de Tempo para nos ensinarem a distinguir o canto dos pássaros, a diferença subtil dos dias chuvosos, a tangente de sentimentos perplexos, o cheiro de pão na cozedura de fornos ancestrais. Desse tempo, guardamos no mais fundo de nós próprios o Tempo que nos moldou, que nos fez crescer, que transbordou de nós próprios sob a forma de máximas, de tábuas valorativas e de códigos de conduta. Depois veio outro tempo que transformou implacavelmente o Tempo de antanho. Mudar é isto, afinal. É apercebermo-nos que essa palavra vagarosa foi substituída por interjeições; que já não há preguiça que valha ao martelar de sílabas sincopadas, nem águas que corram entre margens sem apertos; nem há já quem saiba contar contos exemplares por vagarosos fins de tarde, embora haja quem venha narrar o logo-ali da circunstância imediata. Fechados os fornos, despedidos os gados, deixou de haver tempo para discriminar o canto do melro do da rola. Junqueiro despediu-se e já ninguém o lê. Pudera! Acabaram-se os passais e as lentas digestões dos Senhores Vigários. Até os Tenórios à maneira antiga levaram sumiço. Mudar é este lastro do que guardamos na memória, sabendo bem que é essa, afinal, a moeda com que compramos a mercadoria do Tempo novo.
16 de janeiro de 2007
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2 comentários:
Compreendo-o muito bem, embora tenha nascido na capital do país e só haja contactado com a Natureza - nessa perspectiva que tão bem relata - já na puberdade. O meu Pai não tinha muito tempo para me contar o quer que fosse, mas foi o meu Avô quem me falou muito de democracia, de liberdade e da Guerra.
Como vê, realidades tão diferentes separam-nos, contudo, compreendo-o em absoluto, porque, cá dentro, no fundo de mim, há essa lembrança de um Tempo que não sei de onde veio nem como nasceu. E também perdi essa tranquilidade que não sei se alguma vez tive... Mas sinto que perdi.
Permita-me, todavia, deixar uma linha de esperança. Coloco-a sob a forma de pergunta.
- Não estaremos, escrevendo aqui, nesta realidade virtual, a cumprir, doutra maneira, os rituais de outros tempos, deixando para os mais novos palavras que um dia ponderarão? Não estaremos a substituir a copa frondosa das árvores por máquinas que constituirão a referência dos nossos filhos e netos?
Dói que a Natureza seja assim tão abandonada, que já não se sinta o cheiro do pão acabado de sair do forno. Mas não estaremos a dar outros odores às palavras pelas quais nos recordarão?
Saúdo mais esta feliz iniciativa do meu muito considerado e distinto Professor e muito estimado e especial Amigo que, através do «livre-e-humano.blogspot», nos dá mais uma brilhante lição do seu espírito empenhado e criativo de exercício cívico e pedagógico.
Em acréscimo à excelência das obras e artigos que tem publicado, este cuidado texto que nos oferece a título de prólogo do seu blog, é um aliciante estímulo à reflexão crítica sobre um "Tempo novo" que, na velocidade descontrolada da mudança,"transformou implacavelmente o Tempo de antanho" mas nos empurra para um deserto de valores onde o individualismo egoísta parece ser a única regra e o enriquecimento e ostentação a todo o custo o único objectivo. Não sou saudosista do "Tempo que nos moldou", mas este não é o meu "Tempo novo"!
Bem-haja Prof. Doutor Carvalho Homem e Caríssimo Amigo.
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