14 de fevereiro de 2007

O ÓDIO DE JUNQUEIRO

Guerra Junqueiro compôs em 8 de Abril de 1890 um poema terrível. Intitulava-se O Caçador Simão e era dedicado a Fialho de Almeida. A indignação produzida pelo Ultimato inglês havia afastado Junqueiro do convívio mundano, gastronómico e monarquista dos “Vencidos da Vida”, convertendo-o numa das vozes mais agressivas e impacientes da propaganda republicana. A composição poética apareceu na Província, no Globo e em diversos jornais de Lisboa, como nos Pontos nos ii, de Rafael Bordalo Pinheiro. O caçador Simão era o rei D. Carlos, há pouco entronizado, que nutria pelas actividades cinegéticas um fanatismo incondicional. Simão designava um dos apelidos do jovem monarca. O poema falava assim:


Jaz el-rei entrevado e moribundo
Na fortaleza lôbrega e silente…
Corta a mudez sinistra o mar profundo …
Chora a rainha desgrenhadamente …

Papagaio real, diz-me quem passa?
-- É o príncipe Simão que vai à caça.

Os sinos dobram pelo rei finado …
Morte tremenda, pavoroso horror!...
Sai das almas atónitas um brado,
Um brado imenso d’amargura e dor …

Papagaio real, diz-me, quem passa?
-- É el-rei D. Simão que vai à caça.

Cospe o estrangeiro afrontas assassinas
Sobre o rosto da pátria a agonizar …
Rugem nos corações fúrias leoninas,
Erguem-se as mãos crispadas para o ar!...

Papagaio real, diz-me quem passa?
--É el-rei D. Simão que vai à caça.

A Pátria é morta! A Liberdade é morta!
Noite negra sem astros, sem faróis!
Ri o estrangeiro odioso à nossa porta,
Guarda a Infâmia os sepulcros dos Heróis!

Papagaio real, diz-me, quem passa?
--É el-rei D. Simão que vai à caça.

Tiros ao longe numa luta acesa!
Rola indomitamente a multidão …
Tocam clarins de guerra a Marselheza …
Desaba um trono em súbita explosão!...

Papagaio real, diz-me, quem passa?
--É alguém, é alguém que foi à caça
Do caçador Simão!...

A implacabilidade de Junqueiro faz-se sentir logo na primeira quadra, quando acusa o príncipe herdeiro, D. Carlos, de se manter indiferente perante a agonia do seu pai D. Luís, sofrida em sudário de lancinantes dores na cidadela de Cascais, e alheado ante os choros da sua mãe, a rainha D. Maria Pia. Os restantes versos referem-se ao profundíssimo abalo patriótico suscitado pela afronta britânica. Apocalipse de raivas e de ressentimentos (num tempo em que o sentimento de pertença a um país ia muito além do pragmatismo calculista dos negócios), o Ultimato ficaria lapidarmente caracterizado por João Chagas, quando este o interpretou como o evento que no começo soltou os brados de morte à Inglaterra, para logo depois desprender os vivas à República. Como pode ler-se, a economia da composição poética de Guerra Junqueiro combina uma narrativa diacrónica e prospectiva, desenvolvida nas quadras, com a obsidiante acusação contida nos tercetos. Perante a morte do pai, a aflição da mãe, os vexames infligidos à Pátria, as indignações de uma opinião pública ao rubro, perante tudo isto o Príncipe Real e o actual Monarca D. Carlos de Bragança dava a sua preferência às lebres, aos javalis, às perdizes e às galinholas. É bom que se diga que o poema nos dá a verdade de um sector insofrido e potencialmente revolucionário da burguesia urbana, afecta à República. Guerra Junqueiro construiu aqui um libelo intransigente, que pode ombrear com a melhor poética da propaganda política do seu tempo. Temos para nós que D. Carlos, recém-chegado ao trono e vítima de um circunstancialismo histórico que não era da sua estrita responsabilidade, estaria longe de merecer as acusações de mau filho, de mau rei e de mau patriota com que Junqueiro o crucificou. Formalmente, porém, o poema é muito belo. Retira o melhor do seu impacto da pergunta que nos tercetos é dirigida ao papagaio real e à uniformidade acusatória da resposta: “Papagaio real, diz-me, quem passa? // --É el-rei D. Simão que vai à caça.”. O modo como Junqueiro remata a sua composição é terrível e profeticamente certeiro:

Papagaio real, diz-me, quem passa?
--É alguém, é alguém que foi à caça
Do caçador Simão!...

A cólera de Guerra Junqueiro foi ao ponto de incitar ao regicídio. Estranho ódio este, vindo de alguém que fora deputado de um dos partidos rotativistas monárquicos, o Partido Progressista, e que frequentara as opíparas refeições de palacianos tão notórios como o Conde de Arnoso, secretário de D. Carlos, como o Conde de Sabugosa, muito próximo da rainha D. Amélia ou como o Conde de Ficalho, mordomo-mor do Paço. Profético ódio este, concretizado no regicídio de 1 de Fevereiro de 1908, quando a caçadeira de Buiça e o revólver de Alfredo Costa decidiram dar “caça ao caçador Simão” …
O Mal existe como categoria ontológica? E será possível conclamá-lo, por antecipação, no contexto de um poema funéreo? A fase final da vida de Junqueiro servir-lhe-á para se retratar e para expurgar dos livros Pátria e Finis Patriae as incendiárias diatribes contra D. Carlos. Mas o arrependimento dos vivos não ressuscita os mortos. A responsabilidade joga-se toda no presente.

6 comentários:

Pedro Bingre do Amaral disse...

"...num tempo em que o sentimento de pertença a um país ia muito além do pragmatismo calculista dos negócios" (ACH)

Pois não terá sido o século XIX a época de invenção dos nacionalismos, às mãos de uma minoritária e emergente burguesia liberal e letrada, que se preparava para tomar "a pasta, a posta e o posto" da administração pública à base de pretextos nacionalistas - sobretudo linguísticos? Penso nas teses apresentadas por Hobsbawm: o nacionalismo linguístico usado como arma de arremesso pela burguesia de raízes locais contra uma alta aristocracia francófona de costados cosmopolitas.

E o povo, seria ele nacionalista? Consta -Hespanha dixit- que quando D. Carlos navegava ao largo de Esposende nas suas prospecções oceanográficas, decidiu-se a abordar um barco de pescadores humildes para lhe comprar algumas peças de peixes. Da amurada lançou a pergunta:

"-Eh lá, sois portugueses?"

A resposta veio em voz rústica e sotaque nortenho:

"-Não sei que é isso, nós vimos dali de Espinho!"

Com efeito, que noção abstrata de portugalidade poderiam ter os 90% de portugueses analfabetos, que jamais houveram ido além das bouças ao redor da aldeia. Bairristas? Talvez. Nacionalistas - não, de todo: o conceito de nação ainda estava por lhes ser inculcado.

Dito isto, parece-me que tanto o nacionalismo como o internacionalismo são, sempre que defendidos de forma extremada, um mero pretexto para emprestar um verniz de legitimidade e encanto poético ao interesses financeiros. Que querem os nacionalistas catalães, senão um alívio fiscal? Que querem os defensores da globalização, senão alívios aduaneiros?

Negócio dos negócios, tudo é negócio...

Luís Alves de Fraga disse...

"- Não sei o que é isso, nós vimos ali de Espinho!"
Há-de perdoar-me o ilustre comentarista anterior, mas eu vejo nessa frase singela a mais formosa afirmação de portugalidade dita por uns pobres pescadores analfabetos.
Vejo-a, porque é no amor pela terra, pela língua, pela família, pelo pequeno rincão de onde nunca se saiu, que reside o amor da pátria. E neste caso, a pátria era Espinho e o seu mar; a riqueza do seu peixe; a dureza de uma vida sobressaltada ao sabor de ventos, marés e vagas.
A mais profunda portugalidade não é, por certo, aquela que uns quantos teóricos (nos quais me incluo) definem com palavras bonitas e conceitos rebuscados. Não. Essa é a portugalidade dos que traficam na economia e justificam quem enriquece com o negócio!
A portugalidade dos iletrados portugueses, burros de carga de uma burguesia enfatuada e bem falante (na qual julgo ter, sem grande mérito, um lugar) traduz-se na imensa capacidade de, por amor ao que de mais querido têm, tudo darem, quase sem gemidos nem revoltas. Foi isso que eu vi lá pelas terras de África, nas duas comissões militares cumpridas, a mando de um Estado Novo já caduco, nos moços que comigo serviram, idos de todos os Espinhos de Portugal. Acreditavam que servindo, combatendo, suando e morrendo, se necessário, estavam a contribuir para o engrandecimento de um Portugal do qual só conheciam pouco mais do que a linha do horizonte vislumbrada do ponto mais alto das suas aldeias.
Quantas portugalidades, afinal, existirão?

Pedro Bingre do Amaral disse...

Caro Luís Alves de Fraga:
Pois em certa medida estamos de acordo: há uma certa portugalidade espontânea, dada pelos pequenos gestos que nos enformam o quotidiano: desde logo e acima de tudo o idioma (vou abster-me da estafada citação pessoana); mas também um certo temperamento um tanto piegas e fatalista (outros diriam saudosista) de nós outros, portugueses, os costumes espirituais e menos espirituais. Porém, não creio que ninguém se dispõe a morrer numa guerra longínqua para defender as idiossincrasias da sua etnia (ou "Nação", como diria um propagandista). Pela minha parte, só pegaria em armas e me disporia a matar quando estivesse em causa um verdadeiro etnocídio, que eliminasse os aspectos tangíveis e intangíveis da minha cultura portuguesa, ou ibérica, ou europeia.

Quero que saiba que admiro profundamente todos os moços, ou mancebos (recordo a explicação que Oliveira Martins dava do termo...), que se dispuseram a morrer em combate no Ultramar por aquilo que lhes diziam ser a Pátria. A Pátria teria sido melhor defendida com a criação de uma "Commonwealth" lusófona (claro que não era isto que a União Soviética desejava...), não pela luta feroz em defesa dos latifúndios africanos de uma certa clique minúscula, uma oligarquia mafiosa e rentista que governa Portugal desde há séculos e nos impede de atingir a uma modernidade onde se faça a síntese do liberalismo e do socialismo, do nacionalismo e do internacionalismo.

Salazar dizia: "Angola é nossa!". Mussolini dizia: "Abissinia è nostra!" Foi o que se viu...

Cumprimentos do

Pedro Bingre do Amaral.

Luís Alves de Fraga disse...

Caro Pedro Bingre,

Não quero transformar o blog de um querido Amigo em um qualquer chat, com mais ou menos elevação temática, mas não posso deixar de o esclarecer sobre uns quantos pontos que deixou em aberto no seu comentário.

Desde novo discordei da luta em África, mas, militar de carreira, fui para onde me mandaram, em obediência a princípios que livremente aceitei.
Os jovens que, obrigados por um dever de cidadania nascido na sequência da Revolução Francesa, eram integrados nas fileiras das Forças Armadas tinham - se é correcto assim dizer - duas noções de Pátria: a que a máquina doutrinária do regime lhes inculcou e que, quase sempre, rejeitavam como um corpo estranho e a outra, a mais telúrica, a que vem da consciência de pertença a um grupo que nem sempre se sabe definir com precisão, mas ao qual estamos ligados por teias sensíveis. Como gente simples, acreditavam na missão de espalhar a "fé" num "Portugal" que, aceitavam, ia do Minho a Timor.

Essa "fé" era a que os prendia à terra onde nasceram e que levavam no coração dispostos a "plantar" nas plagas africanas. Eram, afinal, "missionários" da portugalidade mais profunda, a das suas aldeias. A guerra, em muitos, destruiu-lhes o "proselitismo", mas não os fez perder o sentido de que era aqui, na aldeia ou na cidade, o seu lugar de pertença.

Havia, para eles, realmente "duas" "pátrias": a de Salazar e a do berço, a do regaço da mãe, todavia, portugalidade só sentiam uma: a telúrica.

Terei conseguido expressar com amplitude suficiente os esclarecimentos que completam o meu entendimento da portugalidade? Da portugalidade, até dos mais ignaros de todos nós?

Ao meu estimado Amigo Amadeu Carvalho Homem, mil perdões por lhe estar a encher o blog com desatinos resultantes de noitadas que quero viver entre gente que sente as coisas da Cultura;

Ao Pedro Bingre, os meus cumprimentos
Luís Alves de Fraga

Pedro Bingre do Amaral disse...

Caro Luís Alves de Fraga:

Estou em crer que a grande virtude de um blogue é justamente a de espoletar debates públicos paralelos ("chats", se quiser) nas secções de comentários. A escrita plural, dinâmica, contraditória deste meio empresta-lhe qualidades que um livro, por limitações técnicas, não possui.

A "praxis" da "blogoesfera" tem dado grande ênfase a estes comentários. É pela qualidade e quantidade deles que se sói aferir o público e o impacto dos textos originais do blogue. Não comentar um texto que deveras nos surpreende é como recusar o cumprimento a um amigo que nos interpela. O blogue é a árvore; os comentários, os seus frutos.

Cumprimentos do

Pedro Bingre do Amaral.

Anónimo disse...

Concordo com a opinião de que "a grande virtude de um blogue é justamente a de espoletar debates públicos paralelos nas secções de comentários". E os comentários anteriores estão muito longe de serem "desatinos resultantes de noitadas". Gostaria também de entar no debate, embora reconhecendo não ter a profundidade de conhecimentos dos ilustres comentaristas anteriores, que muito considero.
Mas pretendo discutir uma questão diferente, que julgo ser a essencial do texto do meu muito estimado Prof. Doutor Carvalho Homem e prezado Amigo - a terrível e profeticamente certeira resposta do Papagaio real. Não vejo razão para a dramatizar tanto. Afinal, na altura a família real era sujeita a sistemáticos a ataques por parte dos partidos da oposição, de tal forma que as inconveniências em relação a ela se haviam tornado numa forma de ganhar destaque político. Depois veio a crise provocada pelo Ultimato, e os ânimos exaltaram-se ainda mais.Quase três meses antes (18 de Janeiro de 1890) o jornal coimbrão «A Officina» publicara um artigo quase com o mesmo tom e sentido: "Será preciso um esforço e lançar toda a alta porcaria nas águas do Tejo; varrer com pulso rijo e duma só vez a imundície e proclamar a república". Seis anos mais tarde, Afonso Costa não seria menos agressivo que Guerra Junqueiro. "Por muito menos crimes do que os cometidos por D. Carlos rolou no cadafalso a cabeça de Luís XVI". Enfim, era o ambiente de protesto próprio da época, contra uma Monarquia caduca e incapaz de defender os interesses nacionais - que felizmente sucumbiria em 5 de Outubro de 1910. E na altura do «Caçador Simão» ainda se estava a 8 anos do regicídio e muita coisa de mais grave se haveria de passar em Portugal, pelo que - perdoe-me o meu Estimado Professor - considero precipitada qualquer ligação, ainda que indirecta, entre o «Ódio de Junqueiro» e o regicídio.Este, no meu ponto de vista, foi obra da carbonária e só aconteceu devido ao decreto de João Franco que condenava à deportação os implicados na revolta fracassada de 28 de Janeiro de 1908, entre os quais figuras importantes daquela organização secreta e do PRP,ameaçando cortar a cabeça ao movimento republicano. Era uma questão de vida ou de morte para o republicanismo, quando se encontrava à beira do seu triunfo final.
Há que desdramatizar este caso. Afinal, em outros países mais avançados que o nosso - na altura e hoje - correu muito mais sangue real!