
Já o disse uma vez e volto a repeti-lo: tenho respeito pelas coisas, pelos seres inanimados e imóveis que nos rodeiam. São eles provenientes do engenho da Natureza, da indústria dos homens ou da inspiração última de Deus? Há, talvez, nesta minha atitude, uma ressonância mitigada de neo-platonismo. Olho para as coisas como esboços do sagrado, pois sagrada é a Mãe Natureza, que nos dá as condições de sobrevivência e nos acolhe no seu seio; sagrados são também os seres humanos, essas estátuas de barro, essas costelas de Adão, que a Bíblia fez derivar, ainda e sempre, de um solo natural e moldável, prolongado na costela masculina, de que provieram as graciosas silhuetas das mulheres; e ainda sagrado, o mais sagrado de tudo e de todas as coisas, é Deus. Confesso que interpreto a narração bíblica de maneira herética. Para mim, a Sagrada Escritura não define uma relação hierárquica entre o barro, o homem, a mulher e Deus. Afinal, a Divindade poderia ter criado o ser humano a partir do Nada, como o fez para o Luz ou para o Mar. Mas não. Serviu-se de um barro que moldou. Porquê? Porque, no meu modesto entender de incréu (ou de crente adiado?), Deus quis sublinhar que o chão mais modesto, mais humilde, mais obediente, era portador de potenciais de vida, de fermentos subtis e criadores, de sementes prestes a explodir em ser. Cada homem é, desta maneira, um crisol de matéria dignificada. E cada mulher é o natural prolongamento de um barro que se fez osso e sangue, anatomia e sensibilidade. Não é verdade que a mulher tenha sido remetida a um estatuto de subalternidade só por ter nascido de uma parte da ossatura do companheiro. O que o Criador teria querido sublinhar era que cada mulher, parteira de Vida, era já - e desde a génese – vida da vida. Por isso a separou um pouco mais da Natureza. Finalmente, conferindo unidade e sentido à narrativa, vem a própria tarefa do Divino. Ela percorre toda esta arquitectura de Ser. E para a tornar mais próxima das realidades humanas, naturais, a narração sagrada até confessa que Deus sentiu a necessidade de repousar, ao sétimo dia. Francisco, meu bom Santo de Assis, como tu tinhas razão, no amor panteísta, naturalista, singularíssimo, que devotavas às folhas e às águas, ao verde dos montes e às criaturas mais primárias, como a “irmã serpente” ou o “irmão boi”!