Num lance, o Acaso, o Destino ou o que se queira admitir de mais transcendente, pode roubar-nos tudo. A Teófilo Braga, tudo foi roubado, com a inexorabilidade do Deus ex machina que punia cegamente os protagonistas nas representações das tragédias gregas. Foram-lhe roubados os dois filhos, muito depois de um terceiro que morreu ao nascer. Depois viu partir a mulher, que tanto e tão bem o amou, que tanto e tão bem por ele foi amada. Recusou-se a vergar a cerviz aos ditames do Inexorável. Estavam lá os livros? Estavam lá os papéis? Avante, então! E foi esse mesmo Inexorável que se irritou perante a tremenda declaração de resistência. E disse-lhe: “Ai, queres estudar, escrever, publicar? Pois espera, meu menino, que já te ‘faço a cama’”. E foi-o cegando, progressivamente, talvez com um risinho de escárnio a ajudar. “Então, Teófilo, estás finalmente de joelhos?” Não estava! Espantosamente, não estava!
Outros, menos resistentes, teriam abatido bandeiras, numa mais do que compreensível capitulação. Mas Teófilo foi sempre uma Vontade, um Orgulho, uma Afirmação, uma “Consciência” “que nunca soube capitular” . Deste arcaboiço moral inteiriço retirou ele, nos momentos mais angustiosos da sua vida, o impulso vital para perseverar na existência. Dias depois de falecer sua mulher, escreveu uma carta a Joaquim de Araújo que comprova esta jura de prosseguimento de caminhada, esta renitência a confessar uma derrota, esta irredutibilidade na recusa da rendição. Dizia: “Aqui estou sozinho na mesma casa e na mesma forma de viver, mas cerca-me o vácuo. (…) Volto a ser o antigo estudante solitário. Amei, fiz a minha família, trabalhei para ela, e, nesta trajectória da vida, perdi os filhos, agora a esposa – e acordo de um sonho, de um idílio, de uma tragédia, de um naufrágio, de quarenta e três anos. Valeu a pena? Antero diria que não; eu acho que foi uma revelação da vida equilibrada entre duras realidades e altos ideais. E já é uma grande coisa poder dizer: - Vivi”.
Praticamente cego, pediu a antigos discípulos que o ajudassem, como secretários particulares, lendo-lhe os textos por ele seleccionados e sobre os quais ditava os parágrafos dos livros que quis continuar a fazer. Na antevéspera do seu falecimento ainda mandava para os seus editores uma carta, obviamente composta por mão de terceiro, onde pedia que a devolução das provas tipográficas fosse feita de acordo com o calendário dos seus voluntários colaboradores. Uma sobrinha, que lhe levava as modestas refeições, encontrou-o morto na manhã de 28 de Janeiro de 1924, de borco, sobre a cama. Pormenor conclusivo: estava semi-vestido. Deu luta à Inexorabilidade até ao momento decisivo. A Inexorabilidade ganhara a partida. Ganha sempre, aliás.
Houve, continua havendo, muita gente a detestar Teófilo. Tenho de confessar que ele é, para mim, um dos raros heróis que tento imitar (tão mal, apesar da teima…).
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