13 de agosto de 2012

RECORDAÇÕES

Recordo uma das minhas primeiras aulas de Filosofia Antiga, onde menos de dez alunos escutavam, reverentes, o incendiado discurso de um dos meus perenes tutores do pensamento, o Doutor Vítor de Matos, de saudosíssima memória. E que proclamava ele, nesse tão distante momento, guardado durante decénios na minha memória? Dizia assim: “há duas formas de estar na vida – ou se negoceia, ou s e trafica com o Ócio. O "nec otium" é a alienação do tempo, o estar ocupado com valores crematísticos, a resposta imperativa a necessidades primárias. Negociado o tempo, nada mais sobra senão a moeda. Mas o "otium" tem como moeda de troca a Criação”. E, fitando-nos com aquele luminoso e um pouco irónico sorriso, rematava: “os Senhores estão aqui para um exercício de Ócio criativo. Traficar positivamente com o Ócio é criar ideias ou reter as que já existem”. E nas aulas seguintes traficámos ociosamente com Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Demócrito, Sócrates, Platão, Aristóteles e a demais galeria dos augustos pensadores da Hélade. Nunca mais pude esquecer esta lição. Voltei a recordá-la, já depois de 25 de Abril de 1974, quando a ouvi repetida, mas numa versão ligeiramente distinta, pela voz persuasiva mas convincente de uma das sacerdotisas da literatura portuguesa: Natália Correia. Nessa altura, era ela deputada já não sei de que partido, nem isso interessa muito. O que sei é que se discutiam no Parlamento umas tais distribuições de verbas pelas rubricas orçamentais do "nec otium" . O Ministério da Cultura iria ficar, como de resto é costume, com o exíguo remanescente da matéria negociada. Foi então que se ergueu, colérica mas contida, a voz de Natália Correia, para exprobar essa outra “parca ração”. Concluiu a sua intervenção tribunícia com esta tirada: “Por favor, deixem cantar a cigarra”. E a verdade é que as formigas dos negócios mitigaram um pouco mais a avareza da espórtula. Bons tempos ...

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